A Portofino Multi Family Office, uma gestora de fortunas com raiz gaúcha, tem escritório em Nova York. Lá, o sócio Adriano Cantreva acompanha as movimentações de mercado da maior economia do mundo, agitada com um pouco usual corte de 0,5 ponto percentual na taxa básica do Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos). E cheia de expectativas para a eleição presidencial que deve ser disputa até o último minuto, entre dois candidatos vistos como geradores de ainda mais déficit público, ainda que por motivos diferentes. Cantreva tem três décadas de experiência no mercado, com passagens por Itaú e XP.
Qual foi aí o tamanho da surpresa com a decisão do Fed?
O mercado estava dividido. Às vésperas da reunião, as apostas de corte maior subiram. Mas essa não é a forma como o Fed costuma atuar. Um corte de 0,25 ponto percentual era consenso na semana anterior. Depois, houve declarações do Fed em off (sem identificação da fonte) de que o corte seria mais ousado, e isso começou a firmar a expectativa de corte de 0,5 p.p. Embora o mercado tenha ficado um pouco surpreso, não faz tanta diferença. O que pesa mais é a mensagem.
E qual foi a interpretação?
Tem dois contextos. Um é o econômico, de priorizar agora mais a atividade econômica (o Fed tem o chamado "duplo mandato", ou seja, deve tento conter a inflação quanto propiciar o pleno emprego). É importante, mas estamos a um mês e meio da eleição. Em geral, o Fed tenta ser meio neutro. Esperava-se que, por precaução, optasse por um corte de 0,25 ponto percentual, para não ser acusado de tomar partido.
Existe o risco de a decisão do Fed ser considerada política?
Nunca trabalhei no Fed, mas não é muito claro que seja extremamente apolítico. Sabe-se que há forte pressões internas, esse fator não é desprezível. A gente não fica surpreso com esse tipo de coisa. Claro, nada é explícito, mas que existem determinadas linhas políticas, existem. Se há algo comum entre Kamala (Harris) e (Donald) Trump é a expectativa de que liderem governo com déficit crescente. Claro, começou a se agravar com a covid, mas o déficit aumentou muito. No caso de Kamala, seria a continuidade da linha de concessão de subsídios do governo Biden. No caso de Trump, mais por cortes de impostos.
Outra leitura não foi a de que o Fed estava chancelando o temor de recessão nos EUA?
Sim, a redução do juro é claramente um fator positivo, mas nos Estados Unidos é um pouco diferente do Brasil. Aqui, a taxa que o Fed controla (a dos Fed Funds é a básica de lá) incide mais sobre aplicações. A taxa que impacta grandes bens de consumo é a taxa dos títulos do Tesouro americano (Tresuries) de cinco ou 10 anos. Há uma compensação entre essas taxas. Quanto mais o Fed baixa a de curto prazo, mais a expectativa das de longo prazo sobe. É o que temos visto depois do corte.
Por que isso ocorre?
Quando o Fed baixa sua taxa, a expectativa é de a inflação futura seja maior, porque solta o freio à atividade. É um efeito-gangorra. E como o Fed e seu presidente, Jerome Powell, deram sinais de mais afrouxamento, o mercado precificou mais um corte de 0,5 ponto percentual lá na frente. E mais inflação.
Qual é o grande debate econômico da eleição?
O aumento de gasto dos democratas é mais na linha social, assistencial. Propõe reduções no imposto de renda para famílias com crianças e subsídios à moradia. A intenção é aumentar o número de pessoas que já recebe esse benefício, vão baixando a renda. Era a partir de US$ 100 mil (anuais), foi para US$ 150 mil, agora US$ 400 mil já abate, mesmo com outra proporção. O de Trump é mais no corte de impostos. Não aumentaria gastos, mas reduziria a receita.
Esse aumento do déficit não é preocupante, em um país em que a dívida já equivale a 120% do PIB?
Os dois candidatos vão manter o déficit em alta. E fazem isso porque o problema não vai aparecer no curto prazo, só mais adiante. O mercado não foca nisso. Todo mundo sabe que existe uma situação que tem de ser resolvida. Agora mesmo está passando um acordo para elevar o teto da dívida, porque ninguém quer ser culpado por 'fechar o governo' (referência ao shut down, situação em que os serviços públicos são paralisados por falta de orçamento). Uma solução de longo prazo vai ter de surgir. Mas por enquanto, nada será feito. O exemplo mais clássico é o Japão, país desenvolvido com a maior dívida (cerca de 250% do PIB), e vem passando por turbulência por conta disso.
É uma piora anunciada, então?
É importante observar que, embora obviamente a eleição presidencial seja decisiva, para implantar de forma completa qualquer programa é preciso ter maioria no Congresso. Se um dos partidos ganhar a presidência, a Câmara e o Senado, vai poder fazer tudo o que planeja. Mas se ficar com democrata na Casa Branca e no Senado, e Câmara republicana, surge o gridlock (impasse legislativo). É um mecanismo que faz parte dos freios e contrapesos e, muitas vezes, acaba que não acontece muita coisa nova. Mas hoje a eleição presidencial está longe de ser decidida, deve ser decidida no último minuto. As bolsas aqui estão em valorização cheia e não expectativa de que vá cair no curto prazo, ainda mais com a baixa do juro. O Trump não fez um bom debate contra Kamala, mas isso não mudou nada.
Há risco de que Trump volte a abandonar o Acordo de Paris?
Ele não tem falado muito no assunto, o candidato a vice, que é mais organizado nos pensamentos, tem falado mais com a imprensa. Mas não se pode garantir nada. Uma das características de Trump é que, dele, se pode esperar tudo. Qualquer coisa pode acontecer, até os 45 minutos do segundo tempo.
O mercado tem mais simpatia por Trump?
O apoio do mercado é mais amplo porque, bem ou mal, ele é uma pessoa de negócios, entende como o mercado funciona. Kamala é vista como burocrata, foi procuradora, é menos ligada ao mundo dos negócios. Biden e os democratas aumentaram muito a burocracia estatal. Isso reduziu muito a construção de casas. Hoje, construir nos EUA é uma dor de cabeça. E há demanda. Precisa ter financiamento barato.
Leia mais na coluna de Marta Sfredo