Quem é a Cassandra do título? Um personagem mítico, filha de Príamo, rei de Troia, cidade portuária atacada e, depois de um longo cerco, destruída, conforme a mitologia grega. Por motivos que não precisam ser detalhados aqui, tem um dom e uma maldição: faz profecias certeiras, nas quais ninguém acredita.
Ainda antes do cerco, Cassandra adverte pai e irmãos do risco de um guerra contra os gregos, mas ninguém a leva a sério - inclusive por se tratar de projeções sombrias que poderiam afetar a moral da tropa. Depois que tudo ocorre como a princesa/sacerdotisa havia previsto, é claro, é tarde.
Quem passou os últimos anos - alguns, as últimas décadas - repetindo previsões tão assustadores e certeiras sobre o clima como as da "louca" princesa troiana agora sofre de "síndrome de Cassandra". O termo tem origem na psicologia, mas se adapta perfeitamente à meteorologia e ao estudo da mudança climática.
Diante do fato inegável de que as tempestades estão mais frequentes e mais intensas, negacionistas do clima já não tentam fazer de conta que quase dois séculos de uso irresponsável dos recursos naturais não deixaram sequelas.
Agora, tentam argumentar que não foram avisados a tempo. Ou com o barulho necessário. Ou com a devida ênfase. Ou não foram sacudidos no meio da noite por um cientista rouco de tanto falar, escrever e dar entrevistas.
Por favor, um pouco de compostura. Nem em nome dos cientistas que se cansaram de alertar, as Cassandras do terceiro milênio. Mas das pessoas que perderam familiares, amigos, casa, móveis, eletrodomésticos, memórias, livros e até área de cultivo. Um pouco de compostura.
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) em 1988 - há 36 anos. Desde o início, sua missão era "fornecer aos formuladores de políticas avaliações científicas regulares sobre a mudança do clima, suas implicações e possíveis riscos futuros, bem como para propor opções de adaptação e mitigação".
Ano sim, ano também, o IPCC publicava relatórios com advertências cada vez mais dramáticas. "Planeta já sofre impactos do aquecimento global, alerta ONU", era o título de uma matéria publicada em GZH em... 2014, há uma década. "Nível do mar deve subir até 1 metro em 80 anos, aponta relatório da ONU", avisava o IPCC em 2019, quando Porto Alegre já havia sofrido uma série de tempestades de nomes pouco inteligíveis, como "microburst" ou "downburst".
Na época, a prefeitura da Capital foi cobrada publicamente, por esta coluna, a ter um mero protocolo de emergências. Resposta: já temos. Como se viu, não tinha. Em março de 2023, o IPCC publicou seu último relatório anual, o próximo é esperado apenas para o final desta década: "ONU pede ação emergencial para evitar colapso climático no mundo", foi o título em GZH.
Alegar que os governantes de plantão não sabiam ou não foram cobrados antes sobre medidas de prevenção a tempestades severas é tão leviano quanto dizer que os administradores de turno são os únicos culpados pelas perdas do dilúvio de 2024.
Se até determinado ponto temas ambientais eram atribuídos a "marxismo cultural", nos últimos anos até bancos comerciais internacionais e nacionais já condicionam crédito a medidas de proteção ambiental. Então, governantes atuais e pretéritos têm a obrigação de saber o que ocorre no mundo.
E Cassandra? Teve fim trágico, conforme os clássicos gregos. Mais trágico foi o fim dos que a ouviram e escolheram não acreditar.