Diretora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entre 2010 e2015, Luciana Dias é mestre e doutora em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Tem mestrado também pela Escola de Direito da Universidade de Stanford e atua em vários conselhos de administração e comitês de auditoria de empresas brasileiras, além de professora da FGV Direito de São Paulo. Avalia que, apesar da aparente confissão de dívida de R$ 40 bilhões da Americanas, "a informação é insuficiente" para saber se houve fraude. E, para susto da coluna, disse que a resposta definitiva ainda deve demorar de dois a três meses.
Por que o caso da Americanas provoca tanto barulho?
Houve uma tempestade perfeita. A empresa foi buscar dois líderes importantes, com muita reputação no mercado, que acharam que iam fazer a empresa crescer, corrigindo imperfeições. Ambos discordaram da razoabilidade das informações contábeis e apontaram as inconsistências para o mercado.
Ainda dá para chamar só de "inconsistências"?
A informação que temos é insuficiente para saber se as demonstrações contábeis foram menos conservadoras do que eles consideram adequado ou se houve fraude. Os comunicados oficiais não dão essa informação. A CVM pode até pedir para corrigir a contabilidade e isso não representar, necessariamente, um problema de desonestidade. A política poderia ser correta, mas não ter controles suficientes. Pode ser fraude, mas ainda não tem informação suficiente para ter segurança.
E por que foi "tempestade perfeita"?
Se o problema tivesse sido descoberto e identificado pela companhia em um período que não fosse de transição (mudança de gestão), provavelmente formariam o comitê independente, fariam uma averiguação com mais cuidado e a divulgação para o mercado teria sido feita com mais informação, para evitar essa volatilidade, que é resultado de apostas.
Não necessariamente é indicativo de fraude. O pedido é para lidar com o futuro. A empresa tinha um endividamento e, na falta de informação melhor, está somando as duas coisas.
A proteção para dívidas de R$ 40 bilhões já não apontam para um problema maior?
Não necessariamente é indicativo de fraude. O pedido é para lidar com o futuro. A empresa tinha um endividamento e, na falta de informação melhor, está somando as duas coisas. É uma proteção para evitar que todos os credores peçam antecipação da dívida. O cenário depende se o endividamento é longo ou curto prazo. O objetivo é que essas obrigações não vençam todas ao mesmo tempo.
A CVM prevê que a comunicação ao mercado seja a mais precisa possível, e tudo o que não há é precisão. Isso agrava a situação?
O que aconteceu é que os executivos decidiram sair, e não queriam fazer isso sem dizer a razão. Definitivamente não foi a melhor comunicação. Mas talvez tenha sido fruto dessa situação: eles entraram, queriam sair em 10 dias e não podiam dizer só 'mudei de ideia e pronto. Tentaram explicar a razão pela qual renunciaram aos cargos e apontaram o que precisa ser investigado. Caso contrário, também causariam algum estranhamento. Deram a melhor informação que julgavam ter. É uma situação bem difícil, bem atípica para uma companhia.
As regras contábeis que o Brasil adota são internacionais, não há necessidade de alterações. O que precisa é talvez a fiscalização de companhias que tendem a fazer esse tipo de operação.
O episódio vai render um novo aperto dos controles?
As regras contábeis que o Brasil adota são internacionais, não há necessidade de alterações. O que precisa é talvez a fiscalização de companhias que tendem a fazer esse tipo de operação. A CVM já tinha posicionamento em 2016, quando alertou para o fato de, conforme as despesas fossem contabilizadas, poderiam fazer com que o balanço ficasse inflado, e o endividamento, reduzido. Mas não fez movimento de supervisão. A CMV tem cada vez menos braços, enquanto o mercado está cada dia maior.
Como assim?
Não há concurso há muitos anos. Na medida que as pessoas se aposentam ou deixam a empresa por outra razão, o quadro diminui. O último foi em 2010, e o orçamento está cada vez mais apertado. Tem crescimento bastante volumoso emissões, de companhias abertas, mas a CVM diminui. Aí falta braço e vai ter de escolher prioridades.
As auditorias também serão cobradas?
A responsabilidade primária pela contabilidade é dos controles da companhia. A CVM sempre começa a investigação na companhia. Se detecta um problema generalizado, grande, vai ver em que medida o auditor poderia ter identificado aquele problema. A depender do tipo de problema, a CVM vai em cima dos auditores. A princípio, a função da auditora não é identificar fraude. Não se pode, antes de saber qual é o problema, enfiar o dedo no olho do auditor. Seria agir muito às cegas. Mas esse movimento vai acontecer, os auditores vão passar a fazer mais perguntas. De outro lado, na medida que a CVM tenha braço, vai olhar para auditoria, fazer perguntas mais rigorosas. É um movimento esperado.
Aparentemente, tudo isso resultou dos processos de governança, porque houve denúncia ao comitê de auditoria. O mercado tem problemas como esse.
Nesse processo, como ficam os minoritários, diante da perda de credibilidade?
Aparentemente, tudo isso resultou dos processos de governança, porque houve denúncia ao comitê de auditoria. O mercado tem problemas como esse. Na medida que são encontrados e resolvidos, é uma oportunidade para rever práticas. Como se contabiliza risco sacado é uma prática que será revista em todas as empresas de varejo. Todas as empresas que têm comitê de auditoria agora estão levantando perguntas. Diante desses problemas, o mercado vai estabelecer critérios mais rígidos. Agora, é verdade que machuca muita gente, teria sido melhor se tivesse sido feito de um jeito mais educativo. Muita coisa poderia ter sido melhor. Mas o mercado pode se recuperar desse tipo de caso, se tratado educativamente.
Com sua experiência na CVM, quanto tempo leva para que tudo fique claro?
É muito difícil prever com precisão. O comitê independente deve levar dois a três meses para saber qual o problema e entregar um plano para corrigir. Em paralelo, a CVM vai tocar seus três processos.