O que ocorreu na quarta-feira (11) depois do fechamento do mercado é muito raro não só no meio empresarial como nas companhias que negociam ações, submetidas a mais regras de transparência do que as de capital fechado, ou seja, que não estão na bolsa.
Contratados no final do ano passado para reestruturar a Americanas, dois respeitados profissionais, Sergio Rial (ex-Santander) e André Covre (ex-Ultra, ou seja, postos Ipiranga) apontaram "inconsistências" de R$ 20 bilhões e renunciaram aos cargos nove dias depois de assumir.
A situação da rede de varejo já era acompanhada com preocupação no mercado. A coluna registrou quando, ainda em agosto de 2022, o anúncio dos nomes de Rial, para a presidência da empresa e Covre, para a diretoria de relações com investidores, fez as ações das Americanas saírem de queda de 50% em sete meses para alta de 41,5% em dois dias.
O número assusta não só pelo valor alto sob qualquer ponto de vista, mas também pelo fato de que o patrimônio líquido da Americanas estar abaixo dessa quantia, em R$ 14 bilhões. Se todo o valor tivesse "sumido", a empresa estaria literalmente quebrada, ou seja, com patrimônio líquido negativo.
Logo depois da revelação, a companhia informou em fato relevante que o efeito sobre o caixa é "imaterial", ou seja, não seria relevante (leia clicando aqui). Mas reconheceu que "neste momento, não é possível determinar todos os impactos de tais inconsistências na demonstração de resultado e no balanço patrimonial da Companhia".
Tudo o que se avançou no detalhamento do problema é que existem "operações de financiamento de compras (...) nas quais a companhia é devedora perante instituições financeiras e que não se encontram adequadamente refletidas na conta fornecedores", conforme a nota.
Nos meios corporativos, é destacada a "coragem" de Rial e Covre ao apontar a irregularidade publicamente antes de deixar os cargos. Não são poucos os casos em que, em circunstâncias semelhantes, os profissionais saem silenciosamente, deixando o problema para outra equipe resolver ou até se engajam discretamente na solução se não for inevitável expor a dificuldade.
Outro susto em relação ao caso é em relação à PwC, que substituiu a KPMG como empresa responsável pela auditoria independente das demonstrações financeiras das Americanas. No ano passado, quando já havia "inconsistências", aprovou os dados apresentados sem ressalvas. A PwC ainda não se manifestou sobre o tema.
O caso é ainda mais espantoso porque, embora tenham deixado o controle da Americanas no final de 2021, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira ainda têm participação acionária. A reestruturação que fizeram na companhia ajudou a abrir caminho para que se tornassem protagonistas globais de negócios, como na formação da gigante cervejeira Inbev e na compra de marcas como Burger King e Heinz.
No comunicado da Americanas, lembram que estão "quadro acionário há mais de 40 anos" e "pretendem continuar suportando (apoiando) a Companhia, tendo o Sr. Sergio Rial como seu assessor nesse processo". No mundo dos negócios, ocorreu um abalo sísmico. Os próximos capítulos serão acompanhados como uma série de suspense.
Atualização: em relatório ao mercado nesta manhã de quinta-feira (12), a XP avalia a situação das Americanas e cita vários riscos, mesmo que não haja impacto total sobre o caixa:
- Possível impacto caixa negativo: apesar de a companhia destacar que espera que os impactos em caixa sejam imateriais, acreditamos que o anúncio possa implicar três efeitos negativos: i) maior alavancagem, dado que o endividamento da Americanas pode aumentar dependendo dos ajustes em seu balanço patrimonial; ii) Maior custo de dívida, por conta da maior percepção de risco de crédito e liquidez; e iii) Deterioração do capital de giro, dado que a companhia poderá ter problemas em manter os dias de pagamento a fornecedores, por conta de seu ciclo de caixa pior.
- Riscos de processos judiciais nos EUA, dado que a companhia possui ADRs negociadas no país, como observado em casos semelhantes onde os acionistas minoritários foram prejudicados por decisões dos executivos.
Atualização 2: a bolsa de valores (B3) informou que vai manter as ações ordinárias das Americanas em leilão até as 12h, duas horas depois da abertura do pregão. No caso da bolsa, "leilão" tem um sentido diferente do habitual. É um mecanismo de proteção, aplicado exatamente para tentar evitar variação abrupta nos preços. Portanto, estar "em leilão" não significa liquidação de ações, mas negociação interrompida.
Atualização 3: ao falar nesta quinta-feira (12) em evento no BTG Pactual, o agora ex-presidente da Americanas, Sergio Rial, afirmou que não sabe se os problemas na contabilidade da empresa ocorrem há "sete ou 10 anos, mas seguramente não (há) três ou quatro". Disse ainda que a empresa vai precisar fazer um aumento de capital "nos próximos trimestres" para compensar as "inconsistências" de R$ 20 bilhões e não será "de milhões".
Atualização 4: em nota, a Associação de Investidores do Mercado de Capitais (Amec), afirma que "acompanha com preocupação o conteúdo e os desdobramentos de inconsistências contábeis detectadas" na Americanas. Observa que a entidade e o mercado em geral estão "apreensivos, em especial, quanto à quantificação dos impactos, bem como pela conclusão das apurações por parte do comitê independente constituído para tal finalidade. Adicionalmente, a AMEC externaliza sua perplexidade quanto à atuação das instâncias de governança da companhia e dos seus respectivos gatekeepers (guardiões), principalmente auditorias, à luz da magnitude estimada da inconsistência contábil".
Atualização 5: ainda com negociação interrompida dos papéis da Americanas, no início da tarde o efeito das inconsistências derruba ações de bancos - BTG Pactual despenca 3,32% - de varejo - Via perde 3,46%, embora Magalu suba 2,64% - e até empresas ligadas ao grupo de acionistas de referência, caso da Ambev (-1,89%).
Atualização 6: assim que voltaram às negociações, por volta de 14h30min, as ações ordinárias da Americanas derreteram: chegaram a cair 76,25%, de R$ 12 para R$ 2,85, a menor cotação da história da companhia. Em seguida, a bolsa voltou a interromper os negócios com o papel.