Passou-se toda a manhã do dia seguinte à palavra que provocou um choque na economia brasileira, e até agora seu autor, o ministro Paulo Guedes, não se desdisse nem explicou que quis dizer ao afirmar que pediria um "waiver" de R$ 30 bilhões no teto de gastos.
"Waiver", em bom português, é licença, perdão. Então, a declaração de Guedes foi traduzida para "licença para gastar" e interpretada como "licença para matar" o teto de gastos.
Todos os sinais de alerta estão piscando: o dólar sobe 1,6%, para R$ 5,60, a bolsa cai 1,65%, para 108,6 mil pontos, o risco Brasil empinou para o segundo ponto mais alto em 12 meses, 211,5 pontos, e os juros futuros passaram de 11% ao ano, quase o dobro da atual taxa Selic.
Não é culpa do benefício mínimo de R$ 400 do Auxílio Brasil. Guedes só explicitou o que se desenhava desde que se soube que a solução para entregar um programa social mais robusto, que ajude a frear a perda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro no ano eleitoral, passaria do teto de gastos.
Mas afinal, qual o problema se o Brasil virar, digamos, um país sem teto? O tal do teto não é uma invenção do mal para frear gastos públicos necessários – e um dos mais urgentes é um programa social robusto. É uma regra criada para forçar a percepção de que dinheiro não nasce em árvore. Despesa fora do teto significa aumento de dívida, em um país em que o endividamento decolou desde 2014.
Em agosto, a chamada "dívida bruta" total do Brasil chegou a R$ 6,8 trilhões. É uma grandeza só usada no país para dimensionar o Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, tudo o que é produzido em um ano. Por isso, bateu em 82,7% do PIB. Sim, diante dessa cifra, a "licença para gastar" de Guedes, de R$ 30 bilhões, parece pouco. Mas é de grão em grão que o país engoliu esse endividamento considerado excessivo para um emergente.
E aí, é como todo credor: se está superendividado, o risco do crédito é maior, portanto o juro é mais alto. E aí sobe o dólar, que pressiona a inflação, que aumenta a dívida – boa parte é indexada por IPCA ou Selic.
Para tentar justificar um rombo no teto, uma "licença para gastar" ou uma pedalada nos precatórios, Guedes e Bolsonaro usam o argumento de atender aos mais pobres. Mas um dos motivos pelos quais não há recursos suficientes para pagar ao menos R$ 400 a brasileiros famintos foi a gastança prévia com os mais privilegiados, de emendas parlamentares a vantagens para militares.
Além da "licença", Guedes provocou outra fratura que abalou a estrutura do teto de gastos: disse que pode antecipar sua revisão, prevista apenas para 2026. Usar o argumento da pandemia para cortar o prazo pela metade em não vale: no ano passado, a equipe econômica atrasou o início do pagamento do auxílio emergencial até que o Congresso aprovasse o chamado "orçamento de guerra", que dava garantias de não responsabilização pelos gastos extras.
Conforme a Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, é possível honrar pagar os R$ 89,1 bilhões de precatórios previstos para 2022 e reforçar o Bolsa Família ou Auxílio Brasil em R$ 14 bilhões sem furar o teto de gastos.
Marcos Mendes, economista do Insper, fez uma longa lista de despesas que o governo Bolsonaro poderia ter evitado ou ainda pode cortar para garantir o Auxílio Brasil: revisar o aumento do orçamento das Forças Armadas, em especial os gastos com compra/construção de corvetas, submarinos e aviões (só as corvetas custam R$ 9 bilhões, quase um terço do "waiver', privatizar ou extinguir estatais inoperantes, aprovar PEC emergencial que restrinja a formação de passivos trabalhistas no funcionalismo público.