A rapidez na aprovação do pagamento de três parcelas de R$ 600 para os brasileiros mais abalados com a necessidade de isolamento social contrastou com a demora no pagamento efetivo da ajuda. Esse tipo de medida não é exclusiva do Brasil. Quase todos os países minimamente organizados adotaram iniciativas semelhantes.
Nos Estados Unidos, foi em forma de um depósito único de US$ 1,2 mil (cerca de R$ 7 mil pelo câmbio atual) para todos os americanos que ganham menos de US$ 75 mil (R$ 450 mil) ao ano. Na Argentina, houve pagamento de 10 mil pesos (cerca de R$ 800) em parcela única a trabalhadores entre 18 e 65 anos que ficaram sem renda pela interrupção das atividades econômicas, tanto formais quanto informais. Portanto, não se trata de favor.
É um mecanismo de compensação do poder público para a perda momentânea das condições de subsistência em nome do interesse da sociedade. Se é verdade que a tarefa de fazer recursos estimados em R$ 130 bilhões era desafiadora, houve erros que ainda há tempo para corrigir na distribuição das próximas duas parcelas, se não for possível estender o socorro.
1. Necessidade subestimada
Com atrasos do atendimento normal à população mais carente, tanto em benefícios de INSS quanto no Bolsa Família, o governo não tinha estimativa correta do tamanho do contingente que precisava ser socorrido. Esse tipo de ação não era prioridade até o surgimento da pandemia e a falta de dados sobre esse universo mascararam o volume da necessidade.
2. Falta de conexão com o público
O público da ajuda de R$ 600 foi chamado de "os invisíveis", mas a referência só é válida do ponto de vista da visibilidade dessas pessoas nas estatísticas oficiais. Os órgãos de governo perderam a conexão com essa população, com cortes em programas e distanciamento das unidades de atendimento.
3. Solução dependente do digital
A criação de um aplicativo e de contas digitais mirava a eficiência e tinha a boa intenção de manter o distanciamento, mas esbarrou em problemas previsíveis: a falta de acesso material a computadores e celulares e a dificuldade do público de lidar com programas desse tipo. Considerou mais a realidade dos criadores, que pagam contas por app, do que do público, que ainda usa muito dinheiro vivo.
4. Excesso de burocracia
A exigência de CPF regularizado fez surgirem filas em frente a unidades da Receita Federal. A constatação de que um dos maiores problemas era a falta de comprovação eleitoral acabou flexibilizando a exigência, mas depois que a burocracia acabou contribuindo para criar focos de aglomeração e a exposição das pessoas a condições precárias. O objetivo era evitar fraudes, o que não ocorreu. Há estimativa de que 73 militares tenham recebido indevidamente, e terão de devolver.
5. Falta de estrutura da Caixa
Quando chegou, enfim, o momento de permitir saques nas agências da Caixa, o panorama ficou ainda pior. Filas, aglomerações, chuva ou calor intenso expuseram os beneficiados a condições inadequadas. O que deveria ter sido uma virtude, o cronograma curto de pagamento, também se transformou em problema por concentrar muitas pessoas nas agências em poucos dias.
6. Comunicação inadequada
Apesar de ter feito vários comunicados, sobretudo em entrevistas coletivas, o governo e a Caixa ainda não fizeram uma campanha maciça de esclarecimento, até para evitar a exposição e a frustração dos brasileiros que não têm direito a receber o Auxílio Emergencial.
7. Foco político
Na origem de boa parte dos erros, está a intenção de carimbar a ajuda com a marca do governo federal. Esse foi principal motivo para não ter recorrido a prefeituras, que costumam ter cadastros mais estruturados da população à qual o benefício se destina. Se tivesse sido distribuído com ajuda dos municípios, poderia ter sido mais eficiente.
As soluções possíveis
Com o anúncio da liberação da segunda parcela de R$ 600, mais uma pela frente e muitas discussões sobre a possibilidade de tornar permanente algum tipo de renda mínima, ao menos para parte dos beneficiados, especialistas no segmento recomendam correção de rumos. Para Marcelo Neri, o primeiro passo é consertar, no que for possível, o equívoco do governo na comunicação dessas medidas.
Na avaliação do diretor do Centro de Políticas Sociais da FGV, o certo, desde o início do programa, seria valorizar a entrega, apontando que o esforço visava a que as pessoas permanecessem em suas casas. Neri lembra, em estudo publicado na edição de maio da publicação Conjuntura Econômica da FGV, que o presidente Jair Bolsonaro atuou na contramão dessa ordem.
Para o planejamento de uma possível segunda etapa, aconselha, como passo inicial, o uso das informações já disponíveis no Cadastro Único, que abrange 76,4 milhões de pessoas, para reestruturar o modelo de benefício. Também sugere a retomada de um projeto antigo, de usar o título de eleitor como um número universal de identificação da população.
Segundo o especialista, isso permitiria a checagem biométrica, que pode ser feita remotamente, atendendo às necessidades de distanciamento da pandemia, bloqueando fraudes e desvios. Outra sugestão de Neri é estimular a ampliação do microcrédito. Ele argumenta que, além da necessária rede de proteção social, é preciso "dar um trampolim para as pessoas voltarem à altura em que estavam antes.”