Ex-secretário de Comércio Exterior, Walter Barral conhece em detalhes tanto alguns pontos sensíveis do acordo entre União Europeia (UE) e Mercosul quanto peculiaridades da indústria nacional, inclusive a gaúcha. Está entre os entusiastas com o acerto entre as partes, mas adverte que, assim como terá efeitos muitos positivos para determinados setores no Brasil, ameaça seriamente outros, entre os quais a produção de vinhos "tranquilos" – os espumantes estão garantidos – e a de leite em pó. São dois segmentos em que os europeus são muito competitivos e, por mais que tenha sido definido um preço mínimo por 12 anos, um dia esse prazo terminará.
A indústria brasileira foi pega de surpresa com o acordo UE-Mercosul?
Não, havia expectativa de acerto desde o ano passado. Houve tentativa em meados e no final de 2018, e em março deste ano. Mas é preciso ser realista: o texto final ainda não está fechado. Como sabemos, o diabo está nos detalhes. Ainda é preciso definir uma série de pontos, como mecanismos de solução de controvérsia (espécie de 'tribunal' do tratado), ainda tem de ocorrer a revisão jurídica e de linguagem. Isso tudo vai tomar tempo. Depois, vem a aprovação pelos parlamentos nacionais.
É possível apressar a aprovação em cada Congresso, como tem se especulado?
O que estão tentado fazer é uma aprovação temporária no Parlamento europeu, para depois submeter aos nacionais. Assim, o acordo teria uma aplicação temporária mais rápida, mas é uma hipótese questionável. No Mercosul, não é possível fazer por causa das Constituições. Teoricamente, o Parlamento do Mercosul poderia aprovar, mas seria preciso fazer emendas à Constituição de cada país. E os dois lados têm de aprovar, porque não se casa de um lado só.
Estimo 20 anos para que o tratado tenha efeitos integrais. Mas é importante como sinal de abertura comercial. Também dá previsibilidade para investidores europeus no Mercosul.
Em que prazo o tratado terá sido integralmente aplicado?
Tem de levar em conta processos extraparlamentares, como a revisão jurídica. Por mais que corra, vai levar alguns meses. Depois, vem a fase de aprovação nos congressos nacionais. A experiência no Brasil é de que leva de três a cinco anos. Foi assim com os acordos com África do Sul, Israel e Egito.
O momento não mudou?
Era assim até o Bolsonaro, então sim, é possível. Quando o Congresso quer, aprova rapidamente. Mas não adianta aprovar sozinho. É bom ter entusiasmo, o acordo é muito bom, mas mesmos depois de todas as aprovações há os prazos de desgravação (retirada gradual dos impostos de importação). Estimo 20 anos para que o tratado tenha efeitos integrais. Mas é importante como sinal de abertura comercial. Também dá previsibilidade para investidores europeus no Mercosul. Dá sinais positivos, mas isso não quer dizer aplicação imediata.
Prazo para efeito integral não é positivo, até para a indústria nacional se preparar?
O esse acordo gera também outro efeito positivo: a indústria vai pressionar o governo por reformas. O Brasil tem de aumentar a competitividade. A indústria vai usar acordo como argumento para diminuir o peso do governo na economia. Um dos grandes problemas da indústria brasileira é a incompetência do governo. Por outro lado, há setores que são estruturalmente menos competitivos, independentemente do custo Brasil. Por mais que o Brasil se torne competitivo, segmentos como leite e vinho não têm o que fazer.
O espumante brasileiro não tem problema de competitividade, exporta, tem mercado. Mas o vinho tinto europeu, por exemplo, é muito mais barato. Essa indústria vai ter de ser reconverter.
O que isso significa, esses segmentos vão desaparecer?
Não totalmente. O espumante brasileiro não tem problema de competitividade, exporta, tem mercado. Mas o vinho tinto europeu, por exemplo, é muito mais barato. Essa indústria vai ter de ser reconverter (mudar de ramo). Ocorreu o mesmo fenômeno no Mercosul. O que ocorreu com a produção de trigo no Brasil? E o cultivo de café na Argentina. Tinha, mas acabou. É inevitável. Nichos de mercado sempre vão existir, mas tem de saber se são suficientes para manter o setor. Talvez mantenha uma empresa ou outra. Agora, o espumante já fica de pé hoje. Vai ser bom para os espumantes, porque hoje já têm boa exportação.
E no caso do leite, que se associa com produto fresco?
O problema não é com o leite fresco, mas o em pó. Toda cadeia láctea vai ser afetada. O grande consumo industrial é de leite em pó. Deslocando o fornecimento, afeta o preço. Há outros produtos gaúchos que serão afetados, como o pêssego enlatado e até a produção de alho, que tem na Espanha um grande competidor. Por outro lado, há setores claramente beneficiados no Brasil, como café solúvel, carne de frango. Em quase todos os produtos agrícolas, fora os que mencionei, o Brasil é muito competitivo.
Que reformas terão de ser feitas para dar competitividade à indústria?
Além das essenciais, previdenciária e tributária, será necessária uma reforma trabalhista.
O governo francês precisa mostrar internamente que está sendo duro. Há uma grande pressão protecionista interna da áreas agrícola, dos sindicatos.
Outra reforma trabalhista?
O custo da tributação sobre os salários ainda é muito elevada. Os salários são baixos, mas para gerar empregos precisa reduzir a tributação sobre a folha de pagamento. E muitos dos direitos trabalhistas são derivados do custo tributário sobre a folha. É preciso diminuir o custo do Estado no Brasil.
Declarações duras como a do governo francês, que ameaçou não aprovar o acordo, fazem parte do jogo de pressões?
Totalmente. O governo francês precisa mostrar internamente que está sendo duro. Há uma grande pressão protecionista interna da áreas agrícola, dos sindicatos.