Claudio Frischtak preside a InterB, consultoria especializada em infraestrutura.Começou a prestar atenção na China como técnico do Banco Mundial, ainda nos anos 1980. Especializou-se no gigante asiático e atuou em projetos de implementação de inovação tecnológica na (ainda) segunda maior economia do planeta, que vem investindo tanto no Brasil que já provoca disputa entre entidades de representação. Frischtak combate mitos sobre a China, mas também compartilha preocupações sobre o avanço chinês no Brasil.
Apesar de ter identificado cedo o potencial na China, imaginava que disputasse hegemonia com os EUA tão cedo?
No final dos anos 1980, início dos 1990, quando começaram as reformas, havia elementos do enorme potencial chinês. Centenas de anos atrás, antes de os europeus tomarem conta da Ásia, a China era o Império do Meio, o país mais poderoso do mundo, por séculos. Com a ascensão de potências europeias e dos Estados Unidos, perdeu poder. A visão do comando, que boa parte da população aceita, é a de que a China voltará a ser líder global no médio e longo prazo. O segundo ponto é que o Estado é muito estruturado, com alto grau de disciplina e, de modo geral, íntegro. Claro que existe corrupção, mas o governo chinês tem elevada competência, vontade de absorver conhecimento, transformá-lo e até exportá-lo. Um terceiro ponto importante, uma questão estrutural, é que a taxa de poupança na China é alta há muitos anos. Por questões culturais, mas também pelo frágil sistema de seguridade social, apesar de ser uma economia socialista. Isso obriga as famílias chinesas a pouparem para a velhice. No Brasil, a taxa de poupança é de 15% do PIB. Na China, entre 45% e 50%.
A transição do modelo de investimento para o de consumo já está ocorrendo. A China tem recursos em excesso. Com parte, o governo estimulou estatais e semiestatais a investirem fora do país. Essa mundialização é relacionada a excesso de poupança. A visão dos governos é que essa internacionalização é importante tanto para adquirir conhecimento e tecnologia quanto projetar o poder chinês. Exatos 25 anos atrás, ouvi de dois funcionários do Ministério do Planejamento da China: 'Em 20 anos – eles sempre pensam duas ou três décadas à frente –, vamos ter cem empresas chinesas globais'. Em 1992, era difícil de acreditar.
É fundado o temor de que os chineses "invadam" o Brasil, como teria ocorrido na África?
A China não tomou conta da África. Fez investimentos significativos lá, assim como na Venezuela, e nem todos foram bem-sucedidos. O comportamento das empresas chinesas não é estático. Existe modernização da forma de atuar. No início, as empresas tinham pacote fechado, traziam funcionários. Faziam tudo, entregavam, saíam. Houve muita reação à ideia de que os chineses não treinavam pessoas locais, não davam oportunidades de emprego nem geração de renda. O governo chinês tem ojeriza de que o país seja classificado de imperialista, porque sofreu, no século 19 e no início do 20, com o imperialismo europeu e americano. Como houve muita reação ao modus operandi das empresas chinesas há 10, 15 anos, mudaram a forma de fazer negócios.
Há mais oportunidades ou riscos?
Para o Brasil, é muito mais positivo do que negativo. A China tem potencial de investimento muito grande, e somos importadores de capital. No Brasil, os governos despoupam desbragadamente, é só ver nosso déficit primário de 2,7% do PIB e déficit nominal de 9% do PIB. As famílias poupam pouco. Enquanto pouparmos pouco, seremos importadores de capital, principalmente se tivermos de transformar nosso tecido produtivo e infraestrutura. Deveríamos estar investindo em torno de 4,15% do PIB por 20 anos para modernizar nossa infraestrutura. E não chega perto das melhores práticas do mundo. Projetamos que tenhamos investido 1,37% do PIB em 2017. Temos de investir cerca de três vezes mais. Os recursos vão vir do Estado brasileiro, do Banco Central? Não. O governo do Rio Grande do Sul tem capacidade de investir em infraestrutura? Zero. No último contingenciamento anunciado pelo Tesouro, foi anunciado corte de investimentos, que é gasto discricionário. O setor privado tem até vontade de investir, mas tem certa dificuldade. Então precisamos receber investimentos de fora.
E o setor que investia em infraestrutura foi abalado pela Lava-Jato...
Esse é outro lado. Muitas dessas grandes empreiteiras, que também investiam, estão abaladas. Está havendo uma transição importante, mas lenta. Precisamos de investimentos externos em infraestrutura. Se olhar o que está acontecendo nos aeroportos, inclusive em Porto Alegre, quem foram os ganhadores? Três empresas estrangeiras: Fraport, Vinci e Zurich. É bom? Acho ótimo, sinceramente, desde que não tenhamos aquele modelo demente, insano, de Infraero com 49%. O segundo ponto é que as empresas chinesas na área de infraestrutura, muitas no setor elétrico, adquiriram enorme experiência no próprio país. E têm tecnologia muito avançada em transmissão, em um segmento com características semelhantes às do Brasil: território muito grande, alto consumo de energia, em processo de evolução em energias renováveis. A capacidade chinesa de se transformar rapidamente é impressionante. Atrair investimentos na área de geração, transmissão e distribuição de energia é muito bom, não vejo problema.
Ter domínio de certo setor regulado, onde a competição é limitada, as barreiras de entrada são elevadas, não pode significar exercício de poder de monopólio. É preciso reforçar o poder e a qualidade das agências reguladoras.
E quais são os riscos?
O custo de capital das empresa chinesas é muito baixo. Então há grande vantagem competitiva em relação às brasileiras, e a gente pensa 'não é justo'. Mas uma empresa que entra com custo de capital muito baixo pode se interessar por projetos menos rentáveis. O que mais me preocupa, e com que nos defrontamos como consultoria, é a dificuldade de informação. Toda empresa chinesa que investe em setores regulados no Brasil deveria abrir informações, particularmente de investimento – quanto, quando, como investem. As não chinesas são muito mais abertas, mesmo as que não têm ações no mercado. Acho ruim essa prática de segredos sobre investimentos em setores regulados. Não tenho receio de que os chineses tomem conta do país, tenham domínio absoluto de algum segmento. O que deveria nos preocupar como cidadãos, em primeiro lugar, é com a integridade das práticas, tanto de empresas brasileiras quanto estrangeiras. A Lava-Jato afetou mais empresas brasileiras do que estrangeiras. Mas não são santos lá fora. Em delação recente, estrangeiras foram envolvidas na questão dos metrôs. A CVM (Comissão de Valores Mobiliários, responsável por fiscalizar o mercado de capitais) falhou, agências reguladoras falharam. Em segundo lugar, precisamos, enquanto país, maior transparência das informações. Isso se relaciona com o terceiro ponto, que não devemos admitir o exercício de poder de monopólio. Ter domínio de certo setor regulado, onde a competição é limitada, as barreiras de entrada são elevadas, não pode significar exercício de poder de monopólio. É preciso reforçar o poder e a qualidade das agências reguladoras.
Como melhorar?
É fundamental aprovar a Lei das Agências que está na Câmara. Pelo menos 95% da população pratica o esporte de criticar os políticos, mas o Congresso é uma instituição fundamental para o país. Uma coisa fantástica saiu do Senado, e falo porque estudei bastante a legislação. Espero que votem logo e aprovem. Queremos mais investimento em infraestrutura, precisamos reduzir risco regulatório, muito elevado no país. Queremos integridade das agências, precisamos que não sejam politizadas, que não sejam usadas como moeda de barganha. Você tem de ter agências para regular investimentos privados e públicos, brasileiros e estrangeiros. O problema é que muitas empresas públicas não são tão bem reguladas quanto as privadas. Principalmente no âmbito estadual, há conflito de interesses.
Mas uma regra que ainda hoje se aplica é fale com uma empresa chinesa e você estará conversando com o Estado chinês.
Na prática, como empresas privadas representam o Estado chinês?
Não é possível dissociar a empresa, mesmo com 100% de capital privado, do Estado chinês. As mais importantes, com exceções relevantes, são estatais. Muitas estão endividadas, principalmente na área de insumos básicos, indústria pesada. Mas existem estatais de primeiro nível. Tem mistura, capital provincial, capital de outras cidades. Mas uma regra que ainda hoje se aplica é fale com uma empresa chinesa e você estará conversando com o Estado chinês. Existe a percepção de que as empresas pensam que têm certa obrigação com o Estado que não é só pagar impostos. O Estado chinês continua muito poderoso, com capacidade regulatória elevada, muito estruturado, organizado. Ninguém deveria subestimar isso. Hoje há níveis de endividamento muito elevados, principalmente no setor produtivo. Ninguém sabe exatamente de quanto, porque existe o shadow banking, um sistema financeiro informal. É difícil fazer a conta certa, mas é algo entre 200% e 250% do PIB. Fala-se em risco de hard landing. Existe gente muito competente, como Michael Pettis (especialista em economia chinesa da Carnegie), que tem visão diferente. O Estado chinês tem muitos instrumentos, muita capacidade, taxa de poupança e recursos fiscais muito grande e vai impedir – posso comer minha língua amanhã, mas acho que não (risos) – uma aterrissagem forçada. O risco que corremos hoje na economia mundial tem menos a ver com a aterrissagem forçada chinesa e mais a ver com riscos geopolíticos que envolveriam a península coreana. Temos nos Estados Unidos e na Coreia do Norte dois líderes difíceis de serem previstos.
Nessas circunstâncias (catástrofe na península coreana), é claro que as regras de investimento das empresas chinesas mudariam, não aqui fora, mas lá dentro.
Isso afeta empresas chinesas que investem no Brasil?
É um efeito em segunda ordem. Se ocorrer uma catástrofe na península coreana que eventualmente envolva a China... Temos de lembrar que a Coreia do Norte tem fronteira não só com a Coreia do Sul, mas com China e Rússia. Nessas circunstâncias, é claro que as regras de investimento das empresas chinesas mudariam, não aqui fora, mas lá dentro. Haveria reavaliação. Não creio, mas temos de torcer um pouquinho, que ocorra uma catástrofe geopolítica, envolvendo, até o limite, uma guerra localizada nuclear. Mas morei em Washington, lá existe quase paranoia. Eles têm um presidente imprevisível, talvez o mais imprevisível dos últimos cem anos. Sobre investimentos chineses no Brasil, temos de fazer o dever de casa: aumentar a taxa de poupança, reformar o Estado, até porque os investimentos em infraestrutura, onde os chineses têm investido mais, precisam de recursos do governo complementares aos investimentos privados.
Faz sentido o temor de que a China, além do investimento, exporte o modelo de más condições de trabalho?
Há modernização de trabalho na China, inclusive de relações sociais, particularmente no âmbito do trabalho. Há 10 anos, a China era muito diferente. Os salários urbanos são muito maiores do que os rurais, mas, mesmo com essa diferença houve aumento na média nos últimos anos. A ideia de que a China é um lugar barato para se fazer investimento, nesse aspecto de custo salarial, deixou de ser verdade. Há muitos investimentos hoje com trabalho intensivo, como no setor de vestuário, fora da China. Estão aumentando salários em Vietnã e Camboja, por exemplo. Está havendo mudança rápida nas relações de trabalho. A política do filho único, na época decisão acertada, foi revista pelo início de escassez de mão de obra. Vai haver ganhos de produtividade, automação, tudo isso vai gerar demanda menor. O país faz transição na direção de serviços, que exige trabalho intensivo. Quanto mais abertos os chineses ao mundo, mais sensíveis a esse tipo de crítica. Não há risco de os chineses não obedecerem nossa legislação. A primeira coisa de que reclamam no Brasil é a complexidade do regime tributário. Eles e a torcida do Flamengo, todo mundo reclama. O regime tributário chinês é muito mais simples. Eles se assustam e fazem o que as empresas brasileiras fazem: contratam contador, advogado tributarista. Também reclamam, e com certa razão, da dificuldade de visto. É mais fácil eles se aculturarem do que nós. O Brasil é um país grande, com cultura muito forte e coisas arraigadas até demais. Seria bom mudarmos um pouquinho a cabeça.