Principal empresa do grupo Évora, da família Ling, a Fitesa, com unidade em Gravataí, foi considerada, pela terceira vez consecutiva, a mais internacionalizada do Brasil. O grupo fundado por Sheun Ming Ling, imigrante que saiu da China para fugir da revolução comandada por Mao Tsé-tung, hoje está sob comando de seus filhos William e Wilson. Um dos fundadores do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), há mais de 30 anos, William personifica como poucos brasileiros o empresário-cidadão. A bordo de um faturamento anual bilionário em dólares, diz que, em vez de perguntar "por que ajudar?", o certo seria "por que não?". Convidado do 11º Fórum Resposta Capitais, realizado na terça-feira (31) na sede do Grupo RBS, afirmou que o remédio para o excesso de corrupção no Brasil é diminuir regulação, interferência e burocracia.
A Fitesa, empresa da família Ling, foi indicada há duas semanas pela Fundação Dom Cabral como a mais internacionalizada do Brasil. Como foi construída essa trajetória?
É sempre mais fácil falar sobre o que já aconteceu. O desejo de internacionalização era antigo da família, uma vontade clara de não ficar dependente da economia brasileira, essa confusão que a gente conhece. Diversificação geográfica sempre esteve nos nossos planos. No início da década de 1990, fizemos uma tentativa, montamos uma operação nos Estados Unidos, greenfield (operação nova), mas o modelo de negócio não foi correto e, depois de cinco ou seis anos, vendemos. Não teve perda financeira e houve um aprendizado enorme. Com esses erros, aguardamos o momento mais propício para tentar novamente. Esse momento aconteceu 10 anos depois. Em joint venture com um grupo inglês, foram dois movimentos em sequência: a associação que triplicou nosso tamanho e, dois anos depois, a aquisição da parte do sócio, que novamente possibilitou multiplicar por três o tamanho da companhia. Saímos de um faturamento de US$ 100 milhões em 2008 e hoje estamos em escala de quase US$ 1 bilhão, 80% dos quais fora do Brasil, distribuído entre Américas, Europa Central, Oriente Médio e China. Foi um processo rápido. Tinha estratégia para chegar? Não, tinha uma vontade e, com esse foco em mente, a gente soube aproveitar as oportunidades que surgiram.
Qual foi o aprendizado essencial?
Primeiro, um propósito claro. Nós atuamos B2B (entre empresas, que não chega ao consumidor final) e 60% do mercado de fraldas descartáveis, nosso principal mercado, é controlado por três companhias internacionais. No Brasil, a matéria-prima principal, que é a resina termoplástica de polipropileno, tem um único fornecedor, é um monopólio. Se você não tiver musculatura para lidar com clientes gigantes e fornecedores monopolistas, vai ser sempre um marisco entre a rocha e o oceano. Crescer era uma necessidade. Outra questão é diversificar risco. Quando fizemos esse primeiro movimento, em 2008, já estava saturado, não havia mais espaço para crescer aqui, tinha de crescer fora. Anunciamos um investimento nos Estados Unidos, e esse grupo inglês nos procurou. A partir das conversas, surgiu a oportunidade de joint venture. Nesse caso, foi um movimento nosso que motivou reação de um concorrente, que era muito maior que nós, e daí surgiu a oportunidade que aproveitamos. O segundo movimento foi uma iniciativa nossa, e aí havia um momento complicado da economia, 2008/2009 teve a crise do subprime e logo após teve a crise na Grécia e do Chipre. O maior aprendizado é: quando surge a oportunidade, você tem de pegar.
Além da Fitesa, quais são os demais negócios da Évora?
A Fitesa é o principal, 100% controlado pela família. Tem o negócio de latas de alumínio, nossa segunda maior operação, que é uma joint venture com um grupo internacional líder no setor de embalagens metálicas. E duas operações menores, uma de tampas plásticas e outra de ativos florestais, que é muito mais para a preservação de valor do que propriamente negócio.
A decisão de fechar o capital da holding ocorreu por conta de crise ou decisão estratégica?
Foi mais decisão estratégica. Chegamos à conclusão de que nosso crescimento, tanto orgânico quanto por aquisição, não dependeria do mercado de capitais, que os negócios teriam condições de gerar caixa suficiente para isso e existem linhas de financiamento internacionais que possibilitam financiar esse crescimento. O momento do mercado de capitais no Brasil era favorável à compra, e o float (percentual de ações em poder do público) também era pequeno, de 10% na mão de minoritários. O processo levou mais de um ano, com desfecho favorável para todas as partes. Hoje, 100% do capital é da família.
A persistência vale mais do que a ambição.
William Ling
Empresário do grupo Évora
O grupo é reconhecido por ser formador de gestores. Transformar office boys, estagiários e operadores de máquinas em gestores é parte da cultura empresarial?
Sem dúvida. Cerca de 70% do pessoal que ocupa cargos de liderança tem essa origem. É um indicador que criamos há vários anos e monitoramos. Sempre aconselho, em reunião com jovens, trainees e pessoas em início de carreira: quando for procurar uma empresa para trabalhar, a melhor é aquela em que você olha para quem está ocupando o posto número 1 e pergunta 'como essa pessoa começou?'. Todos os presidentes de nossa companhia começaram como estagiários ou trainees. Essa é a grande cenoura que a gente dá para os jovens que estão ingressando, mostrar que podem chegar ao topo por mérito próprio. Outra exigência é manter o negócio crescendo. Meu pai (Sheun Ming Ling, emigrado de Taiwan) sempre disse: tem de crescer, não para criar império, não para dizer "sou o maior", mas para possibilitar que as pessoas cresçam. Uma das únicas formas de manter colaboradores engajados é a perspectiva de que eles podem ascender pessoal e profissionalmente.
Você começou a se engajar em causas e movimentos há pelo menos 30 anos, ao fundar o Instituto de Estudos Empresariais, que criou o Fórum da Liberdade, que virou referência internacional de debate. Qual foi o motor?
Acho que foi a convicção de que, se a gente quer um Brasil melhor, tem de mudar as ideias, mexer nas instituições. Existem ideias certas e erradas, e para isso precisa de gente, de líderes, de uma elite esclarecida. Não há transformação sem lideranças esclarecidas. Para mudar o Brasil, não precisa mudar os 600 do Congresso. Acredito no conceito dos poucos vitais (Lei de Pareto, que estabelece que 80% dos resultados vêm de 20% dos esforços), 15%, 20% fazem a diferença. Estamos comemorando hoje os 500 anos da reforma protestante, da Igreja. Um homem fez isso, Lutero. O IEE é produto dessa crença. Nas organizações, é assim também. São poucas pessoas que desenvolvem a missão, a visão, a estratégia, e tem de ter a capacidade de inspirar e conquistar a confiança e a colaboração das pessoas para que essas estratégias sejam implementadas e os objetivos sejam alcançados. Acho que essa é a crença, formar gente que possa se tornar líder transformador.
Pensar grande ajuda a alcançar um sonho grande?
Não tenho muito esse negócio de pensar grande. Sou muito devagar e sempre. E na vida a gente tem de dar umas cinco tacadas grandes que vão fazer a diferença. A persistência vale mais do que a ambição.
A família criou o Instituto Ling, com foco em arte e cultura, que estão vivendo momentos delicados no país. Foi influenciado por um pouco do seu gosto pessoal?
O Instituto Ling foi criado em 1994 com foco em educação. Na linha de investir em jovens talentos, com potencial de liderança, de serem agentes da transformação, começamos a dar bolsas de estudo para estudo de gestão de negócios no Exterior, até porque a gente acredita que as empresas são os principais agentes de educação hoje no Brasil, educação para o trabalho e para produção de riqueza. O desenvolvimento passa por isso, então boas práticas de gestão incorporadas à economia brasileira é uma aposta interessante. O centro cultural foi um aumento de escopo de atividades que tem tudo a ver com como a família pensa. Surgiu como um projeto pessoal meu e de minha mulher, que é artista, e a ideia frutificou. A família entendeu que isso fazia todo sentido de ficar debaixo do guarda-chuva e não ser apenas um projeto pessoal.
Como empresário com ideias liberais e incentivador de arte e cultura, como vê as polêmicas sobre o tema no país?
Isso sempre foi assim, o que vemos hoje aí não foge do que ocorreu na história. Agora mesmo em Paris houve um trabalho que foi também proibido, censurado. A arte está aí para isso mesmo, para provocar. Esse momento no Brasil de muito ativismo permite, leva a isso.
Se posso fazer o bem, se tenho condições, a pergunta não é 'por que fazer?', mas 'por que não fazer?'
William Ling
Empresário do grupo Évora
Pergunta de Alfredo Fedrizzi, conselheiro no Instituto Ling e consultor da Hyper Island
O que a empresa valoriza quando busca não só executivos, mas funcionários em geral?
Não tem muita preocupação com pessoas inovadoras, ligadas a esse mundo digital, até porque nosso negócio é a velha economia, indústria. Claro que tem a indústria 4.0, coisas que a gente acaba incorporando ao processo, mas nosso produto é físico e as consultorias mostram que é pouco vulnerável a rupturas digitais. Procuramos pessoas que queiram trabalhar em um ambiente que consideramos aberto, com baixo grau de controle, de procedimentos, formalidades. Falo sempre para a equipe que a gente quer trabalhar com pessoas que trabalham de forma adulta, sem medo, sem filtro, sem censura, sem favor. Por mérito. Pessoas que tenham essa característica, disposição, mobilidade geográfica. Tem de estar disposto a trabalhar na China, na Suécia, então acho que é um perfil pessoal, que queiram também uma permanência, que acreditem na nossa promessa de que na empresa vai ter oportunidade de crescimento. Sobre minha formação, a época de estudante, de frequentar bancos escolares já passou. Então é mais leitura, gosto muito de livros de história.
Mas você está fazendo um curso inusitado, não? (risos)
Não é bem um curso. Estou fazendo dança de salão. Foi por necessidade. Tive uma educação chinesa, usamos a expressão 'tiger mom' para as mães chinesas, que são extremamente rígidas, disciplinadoras, exigentes. Fiz sete anos de colégio militar e depois comecei a trabalhar com 18 anos. Então acaba ficando travado, cintura dura, fica muito rígido, muita exigência consigo mesmo e com os outros. A dança de salão veio para fazer o contraponto e foi importante. Depois a gente começa a descobrir como é importante para a longevidade.
Você costuma dizer que filantropia não é missão da empresa, mas que na medida em que cada indivíduo adquire tempo, recursos, ideias e capacidade para mobilizar parceiros, deve assumir a responsabilidade de também contribuir para a sociedade. É o que motiva a fazer o que raras pessoas fazem?
É uma explicação parecida com a da internacionalização, que a gente começa a fazer e depois busca uma explicação dos motivos. Meu pai mandava dinheiro para a província de origem dele na China, para manter algumas escolas. Com pouco dinheiro, mantinha a escola por muito tempo. Minha mãe não via sentido em mandar dinheiro para a China. Dizia que nós escolhemos o Brasil, formamos nossa família aqui, os negócios estão aqui, estamos nessa comunidade que nos acolheu e, portanto, tínhamos de fazer mais coisas pelo Brasil. Então o início foi por reciprocidade. Depois, avaliamos que não era bem reciprocidade, era muito mais gratidão. Começamos com três bolsas por ano, hoje são mais de 20, para filhos de funcionários e programa de jornalismo, também centro cultural, o centro de oncologia do Moinhos de Vento. Parei para refletir um pouco. Tem tudo a ver com a discussão sobre ética, que hoje permeia o país. Na minha concepção, ética é o que regula a relação do indivíduo com seu meio. Pode ser ruim e pode ser boa. A máfia tem sua ética, o PCC tem a sua. Não é bom nem ruim, é uma necessidade, uma condição de sobrevivência. A ética da reciprocidade é a mais elementar, mais básica. É o dar para receber, o toma lá dá cá, é a ética do comércio, dos negócios, da troca. É suficiente? Acho que não. Há a regra de prata: não faça aos outros o que não quer que façam para si. É a ética que possibilitou a civilização, a do 'não matarás', 'não roubarás'. Mas também não é suficiente, porque é uma obrigação negativa, não impulsiona a ações virtuosas. 'Não faça o mal', não diz 'faça o bem'. E existe a regra de ouro: trate os outros como quer ser tratado. Induz a uma ação positiva, mas ainda é muito utilitarista: 'Faço o bem porque quero que façam o bem para mim'. Será que é o que deveria nos mover a fazer o bem? E há a ética da responsabilidade de Max Webber: se você tem condições, faça. A ética profissional tem um pouco disso, os médicos têm o juramento de Hipócrates. Finalmente, há o imperativo moral. Se posso fazer o bem, se tenho condições, a pergunta não é 'por que fazer?', mas 'por que não fazer?'. É a frase de Gandhi: 'seja você a mudança que quer no mundo'.
Pergunta de Dione Kuhn, editora de Notícias de ZH
Você mencionou que as empresas do grupo são desvinculadas do setor público. O que se vê no Brasil, com a Lava-Jato, é uma promiscuidade sem fim. Não é possível ter ligação com o setor público sem corrupção?
O tamanho da corrupção é proporcional ao tamanho do setor público. Não sou eu que digo, são os pesquisadores. A China, por ser um país com grande presença do Estado, é um dos países mais corruptos. Então, se quero diminuir a corrupção, tenho de diminuir as oportunidades para que ocorra. Para muitas empresas, é uma questão de sobrevivência. Até que ponto fazem isso porque gostam, porque está no DNA? Ou até que ponto é uma questão de sobrevivência? Até pouco tempo atrás, a Alemanha permitia que empresas do país contabilizasse propina paga no Exterior, porque entendiam que era uma exigência do negócio para operar em determinadas geografias, em determinados setores. A saída é essa: diminuir regulação, interferência, burocracia.
Vejo com otimismo o que está acontecendo no Brasil. (...) Nunca vi tanta gente jovem, bem informada e bem intencionada, envolvida com política partidária.
William Ling
Empresário do grupo Évora
Pergunta de Marcelo Rech, vice-presidente editorial do Grupo RBS
Como é sua relação pessoal com Porto Alegre? Como podemos fazer para evitar a fuga de talentos da cidade?
Todo mundo diz: 'William, por que você mora em Porto Alegre, se poderia estar em qualquer outro lugar?'. Minha resposta é: 'A gente mora onde está o trabalho, a família e os amigos'. Trabalho aqui, os familiares estão aqui, meus e de minha mulher, a maioria dos meus amigos também. Fizemos o centro cultural nessa linha de melhorar a cidade, fazer um espaço para a comunidade usufruir. Já vivenciei fugas de talentos no Brasil, na recessão de 1983, na época do Collor. Agora as famílias estão indo embora. Estão comprando imóveis para morar em Portugal, Flórida, mandar filhos para lá e não voltar. É preocupante. Para estancar, precisa mudar a situação de 64 mortes por 100 mil habitantes, de Porto Alegre ser uma das capitais mais violentas do Brasil e do mundo. Não é só Porto Alegre, é RS e Brasil.
Pergunta de Leonardo Wengrover, coordenador geral do Capitulo Sul do IBGC
Como foi reinventar a empresa ao menos três vezes ao longo da história da família?
Na trajetória empresarial de 62 anos que meu pai começou em 1955 em Santa Rosa, atuamos em incontáveis áreas de negócio – soja, criação de suínos, têxteis, navegação, polo petroquímico, navegação, alimentos, computadores, e assim por diante. Tivemos uma rede de lojas Benetton, fizemos de tudo. Houve alguns momentos importantes, o primeiro quando fizemos a separação na antiga Olvebra, em que a família Ling ficou com os ativos na área química e petroquímica, o segundo quando houve a transição de gerações. Meu pai saiu de cena e passou para a segunda geração. E refizemos tudo, nenhum dos negócios que ele nos deixou existe hoje, exceto as florestas. É trocar as turbinas do avião em pleno voo. A lição é entender o ambiente, que mudou a partir de Collor e depois com o Plano Real. Meu pai era da geração de empresários que se habituaram a trabalhar em economia fechada, com inflação alta, juros negativos, crédito subsidiado. Quando viu que o jogo tinha mudado e ele não sabia jogar, deu carta branca para nós. O grande mérito foi entender que o momento dele tinha chegado a um termo e não interferir nas decisões dos que o sucederam. Começamos no primeiro dia de forma radical, fechamos operações, vendemos, e ele assistiu com serenidade e nos deixou fazer do nosso jeito. As empresas em média sobrevivem 30 anos, não só as familiares. O grande desafio é como nos afeta e o que temos de fazer. É um negócio darwiniano, mesmo, de quem se adapta melhor.
Pergunta de Jorja Portella, gerente-executiva de B2C do Grupo RBS
Como você vê empresários da sua idade que ainda se mantêm distantes das decisões do Legislativo, do Executivo?
Vejo com otimismo o que está acontecendo no Brasil, porque nunca tivemos tanto ativismo por parte da população. Nunca vi tanta gente jovem, bem informada e bem intencionada, envolvida com política partidária. Tem de separar política e política partidária. Todos somos políticos. Política é a arte de exercer o poder. Política partidária é outro mundo, tem estômago para jogar esse jogo. Nem todos temos, então não dá para condenar quem não tem envolvimento. Mas nosso papel como elite pensante é apoiar aquelas pessoas que têm essa coragem, que querem meter a cara e nos representar nesse mundo.