Na condição de diretora do Programa Nacional de Desestatização no BNDES na década de 1990 e em um país de cultura machista como a do Brasil, a economista Elena Landau recebeu o apelido de "musa da privatização". Era uma das formas de canalizar a forte resistência ao programa que passou para o controle privado empresas-símbolo no país, como Vale e Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Agora, Elena vê correções de rumo nas ofertas pelo Programa de Parceira de Investimentos (PPI) lançado pelo governo Temer, mas lamenta que o Brasil esteja, no final da segunda década do século 21, repetindo medidas e ações da última do século 20.
O PPI teve poucas mudanças no conteúdo, mas muitas na forma?
Há muitas mudanças, não nos ativos da lista, porque aí têm poucas novidades, além das distribuidoras da Eletrobras e mineração. Há uma mudança grande no modelo. O programa de concessão da gestão Dilma era muito intervencionista. Era a ideia de que o Estado poderia resolver boa parte dos problemas. Havia fixação de uma taxa de retorno fictícia. No final, era o dinheiro público que ajustava para que aquela taxa pudesse talvez ser obtida. Havia uma questão entre contribuintes e usuários. O modelo financiava o usuário em detrimento do contribuinte. Alguém teria de pagar. Em geral, nos modelos de concessão, o mais correto é que o usuário pague, e não o contribuinte. Outra questão era de processo. Os editais eram publicados em cima da hora, as condições mudavam sem transparência. Havia problemas de ritos. O PPI é a volta a programa de privatizações organizado, o que é fundamental. Antes, com o BNDES na coordenação, com o Conselho Nacional de Desestatização, o rito era determinando por lei, com fatos relevantes, data room. Nos últimos anos, virou um processo fragmentando. Dependida muito de cada ministro da Casa Civil. As mudanças no processo de venda não tinham prazo necessário para publicação de editais, para convocação de novos investidores. Havia muita participação do Estado. A Infraero era obrigada a entrar. O BNDES entrava com dinheiro. Havia um papel muito indefinido das agências reguladoras. Tudo isso causou muita insegurança. Há uma mudança no processo que promete qualidade, mas ainda temos de ver o processo acontecer. O PPI não é um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nem um novo Programa de Investimentos em Logística (PIL). É um processo novo, onde o BNDES, com o secretário Moreira Franco, toma conta de um processo de forma organizada. É um secretário com força e credibilidade de ministro. Sempre critiquei o afastamento do BNDES nesse processo.
É possível reduzir a dependência do financiamento público para concessões e privatizações no Brasil?
Se tem algo que o BNDES que tem de fazer é financiar estrutura. É papel do banco. O problema é quanto e de que forma. Se o BNDES é colocado simplesmente para fechar a quantidade de recursos necessários para financiar uma taxa de retorno irreal, não é o papel adequado. Agora, se o BNDES entrar com 50% por meio de debêntures, em que o setor privado também terá que participar, é uma participação natural do financiamento de infraestrutura, que sempre foi seu papel. O que se critica em relação ao passado é que se colocava um teto sobre taxas de retorno que só era possível com a certeza de o BNDES fecharia a conta.O primeiro anúncio do programa vai despertar interesse?Algumas coisas processuais parecem pouco relevantes, mas esperamos que sejam importantes, já que não foram testadas ainda. Exemplos são licença prévia, coordenação de órgãos de controle. Não é uma simples reorganização de ativos que estavam na fila. Nenhuma reorganização de ativos prioriza os que têm viabilidade. Sinto falta de ter empresas, de ativos já existentes. Ao menos estudar a possibilidade de vender determinadas empresas, só há a Lotex (braço para loterias), da Caixa Econômica Federal. Por que não a Telebras e outras do tipo? Houve um avanço, que é o fim da obrigatoriedade de participação da Infraero. Há discussão de uma nova MP para discutir a continuidade de uma série de leilões que não funcionaram. É preciso uma discussão sobre essas empresas que se mostraram inviáveis ou que não deveriam existir, como a Telebras. Qual sua função neste momento? Senti falta disso. Pode ser que venha em uma segunda etapa.
Brasileiros já estão inquietos com o pedágio que terão de pagar, mas haverá interessados para cobrar pedágio de brasileiros?
A questão é de preço e segurança jurídica. Para ativos importantes, o preço é fundamental. Havia ideia do mercado de que o preço estava irreal. Agora, houve a decisão de PPI de reduzir. Nas concessões, de investimento de longo prazo, é mais questão de segurança jurídica. Se o novo modelo for consolidado, com menos participação do Estado, com reguladoras no papel de fiscalização, há expectativa de que investidores venham. Com recuperação econômica, que não deve ser de uma hora para outra, devem vir. Estamos numa transição. Houve um modelo que bateu no muro e dependia fundamentalmente dos recursos do BNDES e que vai ter arranjar parceria com setor privado, com setor internacional. É uma transição, que depende da situação econômica e política. Temos perspectiva muito melhor. A insegurança jurídica era muito grande. Quanto mais o BNDES entrava, com taxas de juro baixas, mais expulsava o mercado de capitais. Não haverá financiamento de longo prazo no Brasil de uma hora para outra. Não adianta achar que o mercado de capitais vai resolver tudo.
Essa participação do sistema público é similar em outros países?
Antes da crise de 2008, o mercado de capitais vinha crescendo, a importância do BNDES em financiamentos era menor em razão menor em razão da estabilização da economia. Com o banco entrando por sete anos de maneira massiva com R$ 500 bilhões do Tesouro, expulsou o mercado de capitais. De alguma forma, os empresários acabam viciados na taxa do BNDES, e o mercado de capitais privado não tem como competir. Temos de recomeçar. Ainda há taxas de juros reais muito elevadas, e isso dificulta a criação de mercado de capitais de longo prazo. Não é uma questão de estágio de desenvolvimento de países. Envolve a estrutura da taxa de juro brasileira. É preciso tirar o vício das taxas subsidiadas do BNDES. E isso leva tempo. Algo errado do BNDES foi usar tantos recursos do Tesouro nessa história de campeões nacionais.
A crise facilita o debate sobre o modelo de privatizações?
Está mais fácil do que era. No governo Fernando Henrique Cardoso, os problemas fiscais eram graves, e as privatizações foram muito importantes. É mais compreensível, para quem é contra o modelo, aceitar concessões de rodovias, portos e aeroportos do que a venda de empresas simbólicas, como Vale ou Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). O que ajuda a discussão sobre participação do Estado versus setor privado não é só a questão fiscal, mas a corrupção. A política intervencionista dos governos Lula e, principalmente, Dilma, na Eletrobras e na Petrobras destruiu as empresas. Mais do que a corrupção. O modelo de intervenção do Estado não é viável. Isso tornou mais fácil de debater esse ponto. É mais fácil discutir o assunto quando se fala em infraestrutura porque essas privatizações nunca pararam. O governo do PT promoveu privatizações, não só concessões, e isso ajuda a diminuir a resistência. Se fizermos um debate sobre empresas simbólicas, como Eletrobras e Petrobras, voltamos a debates passados. Essas empresas foram destruídas por má gestão e erros de política econômica. Há muito que se fazer antes de ao menos falar em privatizações. O que há é uma venda de distribuidoras da Eletrobras, porque essa nunca foi a vocação da empresa. A política de desinvestimentos na Petrobras e na Eletrobras é fundamental para reformular as empresas. Quando a política de desinvestimentos da Petrobras foi anunciada, no governo Lula, não houve tanta reclamação. É uma questão política. Acho que, na segunda etapa do PPI, é importante começarmos a discussão sobre empresas que não devem estar na mão do Estado para deixá-lo mais enxuto. Esse governo tem pouco tempo, pouco mais de dois anos.
Quais empresas deveriam entrar na discussão?
Não sei quais empresas fazem sentido, mas é preciso ter uma discussão. A Infraero tem futuro? E a Valec (empresa criada para administrar estradas de ferro), diante do fato de que o modelo de ferrovias não está funcionando? Telebras? Muito antes de Petrobras e Eletrobras, há uma série de questões. Estamos vendo a repetição dos anos 1990, quando Estados frágeis acabaram recorrendo ao programa de privatizações. Tivemos uma ampliação de privatizações de empresas estaduais. Estamos vendo agora esse debate na área de saneamento, ainda muito tímido. Espero que parte das negociações de dívidas de Estados e municípios leve a um programa mais amplo de privatizações. O problema não é falta de ativos, há muitos. Não adianta botar tudo à venda de uma hora para outra. Precisamos organizar esse processo.
Que recado essa volta aos anos 1990 transmite?
Não sei qual é o recado, mas acho muito triste. Depois de tudo que passamos, dos sacrifícios do governo Fernando Henrique Cardoso, foi jogado tudo fora de maneira rápida. Isso começou em 2009. O equívoco vem da ideia de que não há restrição orçamentária. Vamos levar muito tempo para consertar essas questões. Não acontecem de uma hora para outra. A consolidação pós-Plano Real levou tempo. O que acho mais triste é que não há convencimento de que algo deu errado. Fui contra o impeachment porque achava que o ciclo de uma política intervencionista deveria se completar, e ficar claro que não tinha futuro.