Acordei com a preguiça que só o domingo permite. Um barulho estranho perturbava o silêncio. Sons confusos, quase inaudíveis, como miados. Como não tinha gato, não era comigo. Aninhado na névoa onde o sonho e a realidade se confundem, tentei dormir. Para ajudar, abracei a Diana no intento de lhe roubar um pouquinho de seu sono macio. Mas a miadela insistia.
Resignado, levantei para resolver o mistério. No quarto ao lado, encontro uma cena mágica. No clarão de uma réstia de sol sobre o sofá, havia três filhotinhos de gato. Nem precisei decifrar como chegaram. Naquele instante, Pezinho, a gata de um vizinho, entrava pela janela gradeada com mais um na boca. Deitou-se com eles, como se a casa fosse sua, e calmamente iniciou o matinal banho de língua na tropa.
Sem palavras, trouxe a Diana semi-acordada. Ela despertou dentro da cena e aproximou-se dela com a solenidade de quem recebe um presente dos deuses. Estávamos naqueles raros momentos sem pet, parecia que o destino ouvira nosso anseio.
Mesmo intensa, a alegria cedeu lugar ao porém. Existia um incontornável e maiúsculo porém. Pezinho era a paixão e a razão de vida de um senhor solitário que vivia duas casas adiante. Toda a vizinhança sabia. Pezinho vivia lá, mas visitava as casas do entorno para ganhar mimos.
Um diabinho nos soprou no ouvido: vocês não fizeram nada de errado, foi ela que escolheu um lugar melhor para seus filhos. Como nós não nascemos para o crime, a questão era contornar um problema delicado que caiu no nosso colo: uma traição amorosa felina.
Fui avisar o vizinho. A cordialidade dele durou até entender a questão. Veio comigo até em casa numa mudez densa, eloquente de seu humor. A operação resgate seguiu neste silêncio. Terminada, virou as costas sem palavras. Vivemos mais alguns anos nesse local, ele nunca voltou a nos cumprimentar.
Não podendo punir sua amada, jogou a culpa em nós. Ficamos chateados pela situação bizarra e por não acolher uma gata em um momento delicado, que deveria saber o que estava fazendo. Tal era a fúria contida no ar, que logo contamos o sucedido aos vizinhos, vai que ele nos difamasse como desprezíveis aliciadores de gato.
Hoje, com duas jovens gatinhas mandando na nossa vida, lembro aquele vizinho de outra forma, até com empatia. As paixões cegam. Eu não suportaria uma traição assim. Irracionalmente, arranjaria alguém para culpar.