Vamos rebatizá-lo de Carlo. Ele me procura para conversar quando acossado por angustias, insônias, pesadelos e, desta vez, o mais inusitado dos propósitos: viu um fantasma. Não era uma aparição qualquer, era Nero, um cão da sua infância.
Carlo é o caçula de uma família de quatro homens. Nero era de todos, mas especialmente apegado a seu irmão Gigio, o segundo a nascer. Talvez porque estivessem sempre juntos. Uma epilepsia, refratária às medicações da época, o deixava mais em casa do que na escola.
Carlo estava ocupando a casa de sua infância, agora transformada em depósito do negócio da família, quando da aparição. Com a pandemia, limpou um dos quartos de cima para trabalhar isolado. Este escritório improvisado está de frente para o muro onde bate sol. Era o lugar preferido de Nero, hoje usurpado por gatos da vizinhança.
Tomava um café para terminar de acordar quando viu Nero lá embaixo. Sobressaltado, desceu correndo. Não havia nada. Portões fechados, somente um cão alado, ou fantasma entraria. Então pediu uma consulta.
As crises de Gigio o deixavam, nas palavras de Carlo, um Frankenstein. Mal curava as feridas de uma queda, outra crise o machucava em cima. Carlo não se perdoa por deixar de acudir o irmão na escola. Numa crise das feias, escondeu-se. Essa culpa o ronda permanentemente, embora tivesse pouca idade e despreparo para o socorro.
Ele não era o único a se assustar com as crises. Essa seria a única justificativa para que Nero tenha mordido Gigio na coxa. De fato ninguém entendeu o sucedido. Mas quando chegaram, ele convulsionava e tinha uma mordida. Ou seria outra coisa? O fato é que o pai sumiu com o Nero. Deu não se sabe para quem.
Paradoxalmente, quem mais sofreu com o castigo foi Gigio, que perdeu seu melhor amigo. Menos mal que estava começando com a professora particular que terminou sua alfabetização. A leitura, novas medicações e o apoio da família deram a Gigio uma vida próxima ao normal. Mas não houve final feliz. Ele era o para-raios do azar familiar. Aos dezoito anos uma leucemia o consumiu rapidamente. Esta vida do irmão, duas vezes pela metade, marcou a infância de Carlo.
A pergunta dele agora é por que, cinquenta anos depois, esse fantasma o visita. O que ele quer? Respondo que ele viu um espelho. Como ele, Nero amava o irmão e só errou uma única vez. Acrescento que ninguém na época falava com ele sobre a doença, por isso ela era demasiado sinistra e assustadora.
Ele responde que era pior do que o Nero, pois o cão não tinha vergonha do Gigio. Lembro Carlo que é ele que emperra as ofertas que as construtoras fazem pela casa. É ele que mantém o cenário da infância para não esquecer que um dia Gigio e Nero se aqueciam juntos sob o sol do inverno. E tantos anos depois, todos já se perdoaram. Ele deveria se perdoar também.