Jesus estava inquieto. Deus, percebendo, questiona seu filho pelos motivos. Ele diz que é difícil ficar no céu enquanto existe tanto sofrimento na Terra. Insinua voltar para ajudar. Deus lhe pergunta se ele esqueceu que da última vez fora crucificado. Jesus responde que igual seria importante. Deus dá de ombros e sugere: se queres mesmo ir, vá ser médico em um hospital do Brasil, lá a coisa está feia.
Num piscar de olhos, Jesus está de avental, como médico recém chegado, num hospital transbordando de pacientes. O primeiro paciente é um cadeirante. Mal entra na sala e Jesus diz: levanta-te e anda. O paciente assustado obedece. Sem entender bem, sai da sala caminhando, ainda zonzo. Um outro paciente que aguardava na fila pergunta: é bom esse médico novo? O curado responde: que nada, igualzinho a todos. Não escuta a gente, mal nos vê e já manda embora.
A piada é boa porque revela, pelo exagero, que os pacientes querem é ser ouvidos e que o médico gaste um tempo com eles. Condição mínima de se sentirem realmente atendidos. Paradoxalmente, isso viria antes até da vontade de se curar. Pouco importa o milagre, ele queria mesmo é que o médico o escutasse.
A clínica médica antigamente era assim, só a anamnese e o exame físico, ou seja, a escuta atenta da queixa do paciente assim como dos ruídos de seu corpo, forneciam pistas sobre a doença. A imagem do médico com o ouvido ou o estetoscópio colados ao tórax do paciente ilustra essa proximidade atenciosa.
Com a chegada dos exames laboratoriais, e depois os exames de imagem, houve um giro: dados objetivos entram no lugar de garimpar informações na mitologia que o paciente construiu para si e seu sofrimento. Consulta é só para decidir que exames pedir. O excesso de exames dispensáveis estressa pacientes, médicos e sistemas de saúde públicos e privados. Porém, como se tornaram o equivalente de cuidado, o médico que não os solicite será acusado de negligente.
As condições de trabalho precárias e as exigências de produção muitas vezes insanas do serviço médico enterraram ainda mais a escuta. O que era artesanato virou fábrica. Com a tecnologia, as possibilidades de diagnóstico rápido e certeiro se multiplicaram. Mas a relação médico-paciente, que também cura, sofre de inanição.
Os recursos da medicina melhoraram, mas humanos seguem medindo tudo pelo afeto. Isso não é ignorância ou perfumaria: essa distância abala as adesões à efetividade dos tratamentos. Mesmo depois de crescidos, quando doentes, somos visitados pelo desamparo infantil. Esse não precisa de exames para ser visto e não se cura com remédios. Quando sofremos, precisamos de olhos e ouvidos abertos à nossa dor.