Pergunte a qualquer um qual foi o evento do século passado mais mortífero. Provavelmente ele dirá a Segunda Guerra, com seus 60 milhões de mortos. Ela deixou longe a Primeira Guerra, com seus 17 milhões de vítimas. Mas poucos lembram da gripe espanhola (de 1918 a 1920), que estima-se ter matado 50 milhões. Há historiadores que calculam em 100 milhões, pois ela era especialmente mortífera para populações nativas, sem imunidade à gripe, cuja contabilidade era mal registrada. Por exemplo, Samoa Ocidental perdeu um quarto da população.
O mesmo vale para literatura ficcional e teórica sobre esses fatos. As guerras deixaram mais cicatrizes e monumentos nas histórias que nos contamos sobre nosso passado. Pandemias, ainda que avassaladoras, praticamente não geram narrativas convincentes e duradouras, geram silêncios. Isso nos ajuda a entender o negacionismo com a atual.
Com os traumas dos dramas humanos conseguimos costurar um sentido, mas não com o dano frio da morte aleatória causada por doença. O vírus está na gramática da nossa resistência à representação da finitude. Redescobrimos a morte com cada pessoa que perdemos. A cada vez é o “novo” mesmo susto. Para levar a vida, trancamos a morte no porão.
A pandemia nos lembra do corpo biológico, da fragilidade da vida. Como boa parte da história do pensamento humano é para dar um sentido à existência, sendo a outra para dizer que somos imortais, há pouco lugar para inserção dos fenômenos naturais. Nesse sentido, o vírus desperta um sentimento de desamparo espiritual. Não suportamos a ideia de alguém simplesmente desaparecer.
As guerras se beneficiam do discurso triunfante e heroico. A guerra que acabaria com todas as guerras, como se dizia na primeira, e depois o esforço para derrotar a barbárie nazista. Na pandemia não existe glória, sobreviver não parece missão nobre. O esforço contra a peste é passivo, evitativo. Fugimos dela, não a enfrentamos. Num discurso com viés machista, pode até ser visto como uma atitude feminina, portanto covarde.
O mal-estar atual de alguns com a ciência e a medicina, não as levando a sério, pode ser explicado pelo abandono de um pacto imaginário anterior. Afinal, parece uma quebra de contrato: a medicina não vinha prolongando a vida, cirurgicamente nos deixando mais tempo jovens, nos tirando dores, curando doenças antes fatais, como ela agora vem falar em impotência frente a uma gripezinha?
Como agora vem falar de morte?
Nós suportamos muita coisa, mas dificilmente a falta de sentido. A pandemia, essa amarga poção de realidade, com suas decisões aparentemente arbitrárias de quem ela escolhe para levar, revela como não controlamos o destino e estamos à mercê de um corpo falível.