Mary Edwards Walker nasceu em 1832 nos EUA. Teve uma infância livre para uma menina do seu tempo. Seu pai era médico prático, mas sabia o suficiente de anatomia para dar-se conta que roupa de mulher era desconfortável para o trabalho doméstico. Deixava suas filhas usarem vestimentas adequadas aos afazeres. Para a época, consideraram que vestiam roupas de homem. Ela e sua família se lixavam para esses critérios.
Mary aperfeiçoou os passos do pai. Estudou medicina em Syracuse. Única faculdade da época que aceitava mulheres. Quando formou-se já brigava contra corpetes, crinolina, saias de baixo, anáguas e os demais adereços. Ela acreditava que essa condição engessava as mulheres para as lidas da vida. Tinha uma mente prática, sua questão era não trabalhar com uma armadura de pano que impedisse movimentos. Para realizar seu trabalho médico preferia calças. Foi isso que a tornou, na prática, uma feminista.
Começara a Guerra Civil e os hospitais precisavam desesperadamente de médicos. Mary sentiu-se convocada. Apresentou suas credenciais em vários hospitais. Em todos reiterava-se a condição de que ela vestisse um figurino feminino. Eram duas as imposições inaceitáveis: que atuasse como enfermeira sendo médica; que se submetesse à pesada indumentária corrente para mulheres.
Quantas vezes a ideologia emperra a máquina da vida para discutir picuinhas?
A saga por enquadrá-la não dava tréguas. Mas nada como a tragédia para abalar preconceito. Mary trabalhava quando encontrava um cirurgião angustiado demais para se importar com a hierarquia machista ou tolices de costumes. Então ela podia limpar feridas, retirar balas e estilhaços, costurar cortes, amputar membros gangrenados, enfim, curar o possível.
Mary trabalhou em vários acampamentos militares, sempre perto do front, tanto que foi capturada. Posteriormente, num intercâmbio de prisioneiros, foi trocada por um major confederado.
Se a guerra é a ante-câmera do inferno, um hospital de campanha do século XIX é o foyer. Jovens não param de morrer, intervenções cirúrgicas eram feitas sem anestesia. Por falta de material, escolhia-se quem tratar. Mutilavam-se corpos para salvar vidas. O enfrentamento com a morte pode ser mais duro neste bastidor sem glória do que no campo de batalha.
A pergunta que fica: quantas mortes ocorreram enquanto discutiam qual roupa Mary deveria usar? Quantas vezes a ideologia emperra a máquina da vida para discutir picuinhas? Quantas mulheres, quantos cientistas, quantos médicos, maltratados pela imbecilidade militante, são agora requeridos à cabeceira daqueles que os desautorizavam e desdenhavam de seus conselhos?
Final da guerra, apesar de médica, Mary recebeu uma pensão de enfermeira. A medalha por bravura que recebera, lhe foi retirada, só devolvida depois de sua morte. O preconceito ficou com a última palavra.