Já é possível encontrar mil dicas de como levar a quarentena. E são bem-vindas, estamos todos tristes, abatidos. Sem falar no medo por si e seus queridos e na contabilidade das perdas econômicas, que até de Buda tiraria o sono.
Queria deter-me em uma dica: a que coloca metas de aproveitar o tempo livre para fazer coisas que não se consegue fazer usualmente. Essas que sugerem ler clássicos, fazer um curso a distância, estudar uma nova língua, e outras coisas nessa direção.
Primeira questão, o tempo livre para a maioria das pessoas é zero. São poucos os privilegiados. Quem tem filho pequeno está ainda mais exigido.
Segunda questão, temo que esse conselho passe a ideia de que estamos em férias, ainda que forçadas. Ora, é impossível não se dar conta de que passamos por uma situação duríssima. Assistimos ao túnel do tempo. O morticínio que está acontecendo agora na Europa e nos EUA, viveremos daqui uns dias.
A meta razoável é sobreviver com saúde e especialmente saúde mental
Ainda não há remédio para covid-19. Não há horizonte de vacina, nem sabemos se é possível fazê-la. Por exemplo, para o HIV – que causa a aids – nunca se conseguiu. Não há nem a certeza de que se saia imunizado depois da doença.
Pode mudar tudo amanhã, mas ainda não chegou esse amanhã. Aliada à pandemia, temos a politização delirante de um problema de saúde pública, que polariza até o uso de medicamentos, tornando pior o que já é difícil. Viver essa angústia consome parte da nossa energia psíquica. Sentimos o cansaço típico do estresse de dias difíceis.
A ideia de enriquecimento intelectual durante a quarentena parece boa, mas não seria uma exigência de seguir produzindo? Ultimamente nos tornamos o inclemente patrão de nós mesmos. A doença símbolo do nosso tempo é a síndrome de burnout: pessoas demasiado duras consigo, que se levam ao esgotamento físico, não raro, autoimposto. Excelência de rendimento durante a pandemia só faz sentido nessa lógica.
Estabelecer essas metas não seria mais uma forma de negação de que todos vamos perder com a quarentena? Ninguém está tão com o boi na sombra que não vá sentir o golpe de pagar a conta da pandemia. Essa vontade de emergir maior desse período não seria uma maneira de dizer: "Eu não vou perder, vou sair mais rico dessa experiência"?
Na prática, provavelmente será o contrário, vamos sair empobrecidos. A meta razoável é sobreviver com saúde e especialmente saúde mental. Isso já é pedir muito. Portanto, tem cuidado para as metas serem sensatas. E, se alcançares algo a mais, parabéns.
A maior cobiça que nos cabe é garantir a sobrevivência e a manutenção dos laços. Os vínculos têm sido postos à prova: as famílias vão sair desgastadas, os casais machucados e as relações com os filhos avariadas. Esse é o maior desafio. Não penses alto, pensa em manter o que tens e cuidar dos mais frágeis.