As 135 páginas da decisão do ministro Alexandre de Moraes que autorizou a operação da Polícia Federal no coração do bolsonarismo podem ser lidas como um enredo de conspirações, futricas, acusações de traição e muquiranagens do baixo clero que gravitava em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro. Centrada na delação e no celular do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, a trama vale ser interpretada também pelo sujeito oculto do script costurado por Moraes: como a ação deletéria de um ex-capitão punido por indisciplina envenenou a harmonia e a hierarquia nas Forças Armadas, deixando-as à beira de um embate fratricida.
O ponto de inflexão para tentar dobrar as Forças aos caprichos políticos do ex-presidente tem data e local: 29 de março de 2021, em Brasília. Neste dia, num gesto repentino, Bolsonaro substituiu o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, pelo general Walter Braga Netto, que desponta no material apreendido pela PF como um dos cabeças do plano de sublevação. No dia seguinte, Braga Neto trocou os comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica, que rejeitavam a invasão da caserna pela política. A partir dali, o bolsonarismo radical se sentiu liberado para atrair militares para uma conspiração que passava pelo descrédito do sistema eleitoral e pela omissão diante de massas de manobra fanatizadas que se acantonavam, imperturbadas, junto aos muros de quarteis até a eclosão do 8 de janeiro.
A decisão que desencadeou a Tempus Veritatis indica como foi maquinado o ataque aos oficiais-generais que se recusavam a embarcar na aventura golpista. Como não tem relação com a denúncia, deixou de ser tratado, na decisão, um capítulo essencial da história recente do Brasil: como esses generais, vilipendiados por fanáticos que expunham até suas famílias, resistiram ao canto da sereia e foram decisivos na preservação da democracia e da estabilidade institucional. Mas é possível um vislumbre. Numa troca de mensagens com Mauro Cid sobre uma possível carta de oficiais da ativa, um coronel golpista vaza a orientação do então comandante Militar do Sul (o general Fernando Soares) a seus comandados no sentido de que uma eventual adesão ao documento seria "inconcebível" e tratada, "no âmbito do CMS, na forma da lei, sem contemporizações". A carta se limitou a oficiais da reserva.
A quebra de hierarquia e a sedução do poder político são vírus que corroem forças militares e que, não raro, conduzem a fraturas internas, ditaduras e mais corrupção. É o que aconteceu na Venezuela, por exemplo. Apesar dos aloprados, o legalismo se impôs no meio militar. A Tempus Veritatis atirou no que viu mas acabou por desencobrir também que, como instituições, Exército, Marinha e Aeronáutica lograram preservar a disciplina e o respeito ao jogo democrático.