Não são os desígnios divinos que produzem o massacre de mais de 33 mil mortos no trânsito a cada ano no Brasil. O levantamento divulgado esta semana que mostra o maior número de acidentes em Porto Alegre em cinco anos só confirma o coquetel tóxico que nos coloca num infame segundo lugar do ranking mundial de onde mais se morre no trânsito – 16 em cada 100 mil brasileiros por ano –, atrás apenas da Rússia do gelo e da neve traiçoeiros. No Brasil, o perverso somatório de causas começa pelo traço cultural da imprudência e do individualismo.
Depois de ter dirigido mais de 500 mil quilômetros pelo Brasil e cerca de 100 mil por Europa e Américas, algumas situações ainda me espantam por aqui. Por que raios muitos motoristas brasileiros ignoram a alavanca de pisca-pisca, aquele instrumento tão simples de usar quando se vai entrar em outra via, mudar de faixa ou parar no acostamento? Antecipar a manobra que se pretende fazer é regra primária de segurança no trânsito, mas só a prepotência de se imaginar dono da rua, ou a preguiça, pode explicar a incúria.
Outra: pedestres e ciclistas, além de motociclistas, são a parte mais frágil da cadeia de trânsito e, por isso, deveriam receber precedência, como ocorre no mundo civilizado. Mas, aqui, ai de quem não está encapsulado numa cabine. O pensamento geral parece ser de “eles que saiam da frente”, mesmo que haja uma faixa de segurança bem à vista.
Já pilotei quase tudo que se move sobre terra e águas com exigência apenas de habilitação amadora. Na minha pré-história como repórter, testei motocicletas e escrevi muitas vezes sobre segurança em duas rodas. Por isso, sessentão ainda desfrutando são e salvo os prazeres da motocicleta, fico horrorizado com ao que assisto por aí. Sempre que topo com um motoqueiro enlouquecido ziguezagueando ou cometendo barbaridades, antevejo ali alguém com grande chance de morrer jovem.
A essas irresponsabilidades deve-se adicionar dois ingredientes trágicos: a manutenção capenga de veículos e a caótica engenharia de trânsito no Brasil. No primeiro caso, é preciso se acabar com o coitadismo que permite máquinas da morte circularem com freios, luzes e pneus carcomidos. É verdade que alguns donos de carros, motos, ônibus e caminhões teriam de mudar o ganha-pão, mas mães contariam com os filhos por mais tempo e haveria menos órfãos. É uma questão de prioridade para as autoridades.
No segundo caso, prefeituras e Estados devem aceitar que não podem inventar sinalizações e regras de trânsito, que não precisam de criatividade, mas de uniformidade. Aliás, se precisa também de sinalização clara, a começar pela pintura das faixas nas pistas. Mas talvez seja pedir demais a quem não consegue sequer tapar as crateras em ruas e estradas.