No longínquo 1995, numa daquelas ondas de violência no Rio de Janeiro, o novo chefe de Polícia do Estado, Hélio Luz, decretou: "A partir de agora, a Delegacia Anti-sequestro não sequestra mais, a Delegacia de Homicídios não assassina mais e a Delegacia de Roubos não rouba mais". O aviso de então poderia ser invertido e adaptado às competências dos três poderes, porque, no Brasil de 2023, Executivo e Judiciário legislam, enquanto o Legislativo executa.
Por mais óbvias que sejam as atribuições de cada poder, ao longo dos 35 anos da Constituição os papéis foram se embaralhando. Uma das origens do desvirtuamento é a criação das Medidas Provisórias, que nada mais são do que leis emanadas do Executivo que só deveriam ser empregadas em casos emergenciais ou grande relevância É verdade que as MPs precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para seguirem em vigor, mas, para tanto, se alargou a segunda disfunção: boa parte dos congressistas passou a decidir seu voto com base na liberação ou não de emendas parlamentares.
As emendas se transformaram numa graxa a desemperrar votações em parlamentos de Norte a Sul do país, o que foi cegando o eleitorado e ampliando a sanha por verbas. Quando o "bom deputado" é visto como aquele que despacha diretamente dinheiro público para o que bem entende, o parlamento substitui sua missão de debater e propor as grandes transformações e reformas em troca do toma-lá-dá-cá. É, no fundo, um apequenamento da função parlamentar.
Já o Executivo, que deveria definir de forma impessoal e apartidária o uso de recursos públicos, se transforma em repassador de verbas que subvertem a escolha eleitoral, pois as emendas privilegiam quem já tem mandato. As consequências dessa anomalia: menor renovação de parlamentos, paternalismo, formação de currais e, no limite, mais corrupção.
Agora, para piorar o quadro, o STF naturalizou a invasão de atribuições de outros poderes. Quando ministros legislam despudoradamente, a ponto de quererem definir a quantidade legal de maconha, ou se manifestam com argumentos e desenvolturas mais apropriados para a tribuna do Senado, o desgaste da Corte é inevitável. E aí, como reação a essa distorção vem mais distorção, como a proposta de emenda constitucional que dá ao Congresso o poder de anular julgamentos do STF.
Para o leito deste rio recuar, antes que o país degringole de vez, só há uma solução: um acordo sensato de autocontenção entre os poderes para que cada um cuide do que é da sua conta. Na lógica inversa de Hélio Luz, bastaria que o tratado de paz entre os poderes proclamasse: a partir de agora, o Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário julga.