Um comentário do ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno na CPI dos Atos Golpistas evocou uma dúvida e uma constatação importantes. A certa altura, Heleno afirmou que Jair Bolsonaro “não aceitou nenhuma proposta que pudesse causar um abalo profundo no país e até uma guerra civil”. A dúvida: se o ex-presidente não aceitava nenhuma proposta, por que não mandou logo seus seguidores para casa? A constatação: Bolsonaro admitia que uma ruptura poderia causar uma guerra civil.
Some-se a fala de Heleno com a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e tem-se uma pista de que o país realmente passou perto do abismo de um conflito sangrento. Segundo Cid, Bolsonaro consultou os comandantes militares sobre a minuta de um decreto golpista e, dos três, recolheu o apoio do comandante da Marinha, Almir Garnier dos Santos, o único, por sinal, a se recusar a passar o comando a seu sucessor.
A desagregação entre os ex-comandantes, que poderia culminar em um impensável confronto entre as forças ou entre oficiais-generais e subordinados, é mais uma obra da gestão desastrosa de Bolsonaro para a unidade e imagem das Forças Armadas. Três décadas de profissionalização, disciplina e respeito institucional iriam para o lixo caso o Brasil se tornasse mais uma república bananeira, onde militares e tiranetes se aliam para desmerecer o resultado das urnas. Em caso de ruptura, uma guerra interna, com golpistas e defensores da legalidade em lados antagônicos, teria sido de fato um cenário plausível.
O papel do TSE, do Congresso e de instituições civis contra o golpe é bem conhecido, mas ainda está por emergir a linha de defesa da democracia montada por oficiais mais graduados, inclusive pelo almirantado que se opôs à tentação de seu ex-comandante. Nem a Marinha e nem as outras forças embarcaram em quarteladas porque resistiram a toda sorte de pressões e baixarias. Alguns oficiais-generais, e até suas famílias, foram ameaçados e achincalhados nas redes sociais por fanáticos sem limites. Os ataques de baixo nível só acabaram por reforçar as convicções contrárias aos delírios dos extremistas.
Junte-se a essa resistência a contenção exercida pelo então vice-presidente Hamilton Mourão, que se viu no fogo cruzado entre bolsonaristas fanatizados e esquerdistas rancorosos. Mourão foi um dos poucos no governo a apontar para o inevitável isolamento do Brasil em caso de “intervenção militar” e se manifestou abertamente contra qualquer aventura, por mais que desaprove Lula. Essa, aliás, foi a síntese do sentimento dominante que travou o golpe na caserna. Não interessa se no poder há um Bolsonaro, Lula ou outro. Goste-se ou não do eleito, cabe às Forças Armadas, como a todos nós, respeitar o resultado das urnas e a democracia.