Aqui em Haia, na Holanda, há um bairro que guarda as cicatrizes de um dos maiores erros da Segunda Guerra Mundial. Dos bosques da cidade e arredores partiram cerca de mil dos 3 mil foguetes V-2 disparados pelos nazistas contra Londres. Na expectativa de destruir os lançadores móveis, a Royal Air Force, da Grã-Bretanha, planejou o bombardeio a um parque central onde se ocultavam as plataformas. Mas, por um equívoco brutal, os pilotos receberam as coordenadas erradas e 60 toneladas de bombas foram despejadas, em 3 de março de 1945, sobre o populoso bairro de Bezuidenhout, vizinho ao parque.
Com o bombardeio e os incêndios que se seguiram, 511 moradores morreram e mais de 3 mil prédios foram destruídos, entre eles cinco igrejas e nove escolas. Quando se deram conta do equívoco – a Holanda era vítima da ocupação nazista já havia cinco anos -, a RAF lançou panfletos pedindo desculpas à população. O que o desastre de Bezuidenhout ensina é que informações erradas, por melhores que sejam os objetivos, matam - o que é uma boa lição quando se perscruta a estratégia do Planalto para lidar com a pandemia do coronavírus.
É difícil acreditar ou provar que o presidente do Brasil procurou deliberadamente exterminar brasileiros. A hipótese é assustadora demais e, sem evidências definitivas, é improvável que Jair Bolsonaro venha um dia a ser julgado e condenado pelo Tribunal Penal de Haia, cuja corte, por sinal, fica a meros três quilômetros do bairro de Bezuidenhout.
Mas fica a cada dia mais cristalino que o presidente abraçou as coordenadas erradas para combater o coronavírus. Por mais tortuosa que seja, essa linha de ação partia da noção de que a melhor forma de vencer o vírus seria o contágio coletivo, sobretudo dos mais jovens, de forma a evitar um colapso social e da economia. Com sua visão peculiar de mundo, Bolsonaro aderiu à tese. Por isso, promoveu aglomerações, condenou as máscaras e o distanciamento, resistiu e ainda faz vista grossa à vacinação e espalha sandices há muito sepultadas ou ignoradas em outras paragens, como a defesa de medicamentos milagrosos ou o risco de Aids em razão da imunização.
Nesta semana, o Brasil contabilizou quase 22 milhões de contaminados pelo vírus, com 608 mil mortos, uma letalidade de 2,8%, segundo o Ministério da Saúde. Apenas para efeito de imaginação, suponha-se que a imunidade coletiva sem vacinação requeresse o contágio de ao menos 60% da população. O número de mortos chegaria a assombrosos 3,5 milhões de brasileiros, nada menos que 2,9 milhões a mais. Esse seria o desfecho macabro das coordenadas erradas acolhidas por Bolsonaro, de quem, felizmente, se retirou das mãos as alavancas que abriam os compartimentos de bombas.