Durante três décadas e meia, dos estertores do AI-5 ao impeachment de Dilma, a esquerda brasileira reinou praticamente sozinha nas ruas. O resto do espectro político brasileiro reunia-se sob a luz apenas em comícios de campanhas. Se avenida fosse seção eleitoral e cruzamento fosse urna, o Brasil teria sido um tapete vermelho de alto a baixo do fim dos anos 70 até meados dos anos 2010.
Pôr gente na rua é sinal de poder de mobilização, mas, por si, não quer dizer muita coisa. As pessoas saem para as ruas por muitos motivos. Antes da pandemia, atos para celebrar o orgulho gay ou a fé evangélica reuniam literalmente milhões. Levar povo à rua, porém, é apenas um dos termômetros da opinião pública. Pode ser o mais vistoso, o mais barulhento e até o mais empolgante, mas não é o mais importante. O que conta de fato é o voto, seja ele na urna ou no Congresso.
Para quem não lembra, o Brasil assistiu nos idos de 1984 a uma das maiores demonstrações de fervor político de sua história. Na campanha da Diretas Já, que confrontava o governo militar para exigir voto direto para presidente, milhões de brasileiros promoveram um movimento de catarse cívica. Lula, Brizola e FH e de braços dados cantavam com Fafá de Belém e centenas de milhares de vozes no asfalto em manifestações pacíficas que culminavam com a soltura de uma pomba branca. Um dos atos, em São Paulo, reuniu 1,5 milhão de pessoas. Mesmo diante de gigantescas massas defendendo algo tão popular e óbvio como eleição direta para presidente, o Congresso derrubou a Emenda Dante de Oliveira, e o Brasil só foi votar para presidente cinco anos mais tarde.
No Brasil de 2021, povo na rua é uma fotografia para as redes sociais. Se encher os olhos, o organizador se infla de coragem e discursa no calor do momento para compartilhar com seus seguidores. Se o ato estiver esvaziado, o organizador busca explicações e diz que o início de movimento é assim mesmo. Desde que a esquerda perdeu a hegemonia das ruas, as avenidas foram democraticamente divididas, mas é na maioria silenciosa – aquela que não vai a manifestações – e se impressiona ou faz tsc, tsc diante da TV ou do celular que está a resposta para o futuro.
Tomar povo na rua como a realidade geral é mais ou menos como aquele candidato que cumprimenta milhares de pessoas e onde quer que vá recebe tapinhas nas costas e promessas de votos de toda a família. Quando as urna são apuradas, ele não tem 10% dos votos necessários. Cai em depressão e se pergunta onde errou. Seu erro foi perscrutar a situação apenas pela aparência ou pelo que queria enxergar. Como esse candidato, quem interpretar o alma de um povo apenas pelo barulho das ruas vai ver a capa do livro. Mas o enredo é bem mais complexo, profundo e, muitas vezes, surpreendente.