O anúncio do Nobel da Paz a dois jornalistas têm uma dimensão especialmente gratificante para mim, e não apenas porque meus caminhos se cruzaram nos últimos anos com os dois vencedores, Maria Ressa e Dmitry Muratov. Em 2016, como presidente do Fórum Mundial de Editores, entreguei em um congresso em Cartagena ao jornal do qual Dmitry é editor-chefe, o Novaya Gazeta, o prêmio Golden Pen of Freedom, concedido desde 1961 a pessoas e organizações que se destacam na defesa da liberdade de imprensa. E em 2018, como vice-presidente do fórum, tomei parte da entrega do mesmo prêmio, desta vez em Cascais, em Portugal, a Maria Ressa.
Pequena em estatura mas uma gigante na sua capacidade de argumentar e resistir a pressões, Maria é um ícone e, posso dizer, uma amiga de muitos anos. Conheci-a em congressos e reuniões de chefes de redação mundo afora. Foi durante nossos muitos almoços e jantares e incontáveis conversas que me dei conta de que havia algo de muito errado no fato de o negócio das redes sociais produzir um efeito colateral que desvirtuava a realidade e, portanto, o direito de se fazer escolhas sobre informações e dados verdadeiros, base de qualquer processo democrático.
Dois anos antes das últimas eleições presidenciais, também foi Maria quem me acendeu o alerta de que o Brasil caminhava na mesma trilha das Filipinas. Em março de 2017, na primeira reunião de um organismo da ONU, na sede da Unesco, em Paris, para discutirmos os impactos da erosão do jornalismo na estabilidade mundial, Maria fez um relato dramático da perseguição que sofria no seu país por contestar o discurso radical e extremado do candidato e depois presidente Rodrigo Duterte.
Atacada noite e dia pelas redes sociais, Maria cunhou a expressão “weaponization”, que pode ser traduzida como “uso bélico”, das redes sociais, um meio, aliás, em que tanto confiara para criar e catapultar o site Rappler. Logo depois do evento da Unesco, coordenei na sede do jornal Le Figaro uma reunião com duas dúzias de dirigentes de redações de quatro continentes. Maria brilhou de novo e ajudou a fazer brotar ali a convicção de que o reino maravilhoso das big techs tinha algo de podre.
A decisão do comitê do Nobel da Paz é, antes de tudo, uma poderosa mensagem ao mundo em favor do jornalismo livre e contra a desinformação e os autocratas que a manipulam. Quando entreguei na Colômbia o Golden Pen ao Novaya Gazeta, lembrei as intimidações contra veículos que não se subordinavam ao Kremlin e a “coragem e determinação” de Dmitry e sua equipe em seguir produzindo jornalismo independente, a despeito, inclusive do assassinato de seis de seus jornalistas. E ontem de manhã, assim que soube da concessão do Nobel da Paz, enviei uma mensagem à Maria Ressa. “Você nos representa”, disse a ela. Não poderia ter sido mais sincero. Desta vez, a verdade venceu.