Em julho de 2018, quando conversei com a jornalista filipina Maria Ressa, laureada com o Nobel da Paz, nesta sexta-feira (8), junto com o russo Dmitri Muratov, o que mais me chamou a atenção foi sua capacidade de antever que a realidade política de seu país, em breve, poderia se tornar um fenômeno mundial, com impactos em nações como Estados Unidos, Hungria, Polônia, Itália, Reino Unido e Brasil, por exemplo.
O presidente Rodrigo Duterte elegeu-se nas Filipinas com um discurso populista, defendendo uma "guerra às drogas" que logo se transformaria, nos guetos e nas ruas, em uma operação de extermínio e execuções extrajudiciais, e, nos ambientes virtuais, uma máquina de enxovalhar reputações e cercear a imprensa. Quem questiona sua política, entre eles jornalistas, é taxado de "inimigo da pátria".
Ressa é uma dessas personalidades. Fundadora do site de jornalismo Rappler, ela se tornou persona non grata no reino de mentiras de Duterte, tendo sido processada por diversos motivos e, por fim, presa um ano depois de nossa conversa com base em uma controversa lei sobre "difamação cibernética".
Como em todas as ditaduras em gestação, não foi de uma hora para a outra que os direitos de imprensa e de expressão foram sendo erodidos nas Filipinas. A transformação foi gradual. Afinal, como se sabe, a democracia morre, nesses contextos, um pouco a cada dia, quase de forma imperceptível, não fosse os gritos de Ressa, de Muratov e de tantos outros.
A escolha de ambos para o Nobel da Paz, a mais importante categoria da láurea mais famosa do mundo, é um reconhecimento de que, apesar de vilipendiado, por vezes caçado por regimes de extrema-direita ou de extrema-esquerda nas Filipinas, de Duterte, na Rússia, de Vladimir Putin, na Venezuela, de Nicolás Maduro, ou no Brasil, de Jair Bolsonaro, o jornalismo profissional segue - e a pandemia reforçou isso - como bússola para sociedades navegarem em mares turbulentos deste início de terceira década do século 21.
Mas o Nobel para eles é mais do que isso. É uma reação lúcida e humanista contra cinco ervas daninhas do nosso tempo:
- O antiglobalismo, que aposta em um retorno aos nacionalismos que tanto mal produziram no século passado;
- Governantes que se acreditam acima das leis e do povo que os elegeram;
- Líderes populistas de diferentes matizes ideológicos, que buscam no amálgama direto com seus seguidores, eleger adversários que, na visão simplista e retrógrada da Guerra Fria, são chamados de inimigos e, nessa lógica, devem ser destruídos;
- A pós-verdade, que, com seu relativismo generalizado, declara a morte da verdade factual;
- A desinformação e o uso de redes sociais para perseguição a adversários e para propagar discursos de ódio.
Por fim, a escolha de Ressa e Muratov é um resgate dos melhores valores que a humanidade construiu a partir dos horrores do século passado.