Lya Luft

Lya Luft

Cronista, romancista, tradutora e autora do best-seller "Perdas & Ganhos", Lya Luft escreveu semanalmente em ZH. Natural de Santa Cruz do Sul, Lya faleceu em Porto Alegre, em 30 de dezembro de 2021. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano

Significados

“O sentido da vida” parece quase antiquado e esdrúxulo na correria da vida moderna

Lya Luft

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Numa simpática entrevista, alguém me pergunta se acho que as pessoas buscam significados para as loucuras, confusões e desgraças desta pandemia – na qual a maioria nem consegue mais ouvir falar, embora sofra na carne ou na alma as suas consequências.

Fingimos até que ela nem existe, que é invenção de sistemas e lideranças corruptas ou ávidas de nos colonizar, enfim, tudo o que permite a perigosa mistura de desinformação, má vontade, arrogância e medo.

Não sei se normalmente buscamos significados. 

“O sentido da vida” parece quase antiquado e esdrúxulo na correria da vida moderna, quando não temos mais tempo, vontade ou lugar para contemplar um pôr do sol, escutar o vento nas árvores, olhar crianças brincando, ou responder com calma e amor quando uma delas vem contar, como certa vez uma de minhas netas, que ela e o pai acharam no jardim um passarinho morto, “e a gente plantou ele na terra”. E certamente ela e eu acreditamos piamente que dali nasceria uma árvore de passarinhos, que iriam voar pelos céus muito acima da nossa banalidade.

A maioria de nós não busca significados, porque nem tempo para refletir lhe resta: ocupamos todos os espaços com atividades, está na moda, até crianças, quando em situação normal, parecem pequenos executivos com agenda cheia ou quase cheia. E possivelmente nos atordoamos um pouco, pois alguém me disse “parar pra pensar? nem pensar! se paro pra pensar, eu desmorono”. 

A vida é outra, é agora, as relações são outras, embora os sentimentos não tenham mudado: todos queremos presença e atenção, afeto, escuta, colo ou ombro, alegria, prazer. Mas falta, intensamente, imensamente, o convívio normal com família e amizades especiais, a pequena liberdade de almoçar fora com uma amiga, de levar netos e netas para a casinha da serra, de trocar ideias, sérias ou divertidas, com filho, filha, noras e genro, e, enfim, ser uma pessoa normal, dentro do que julgo normal: menos louco, menos oprimido, menos assustado do que agora, menos doutrinado e tantas vezes mal doutrinado.

Então vamos nos divertir, porque aprender é muito chato, somos maus alunos, queremos nossa vida, nossos limites (largos, por favor), nossa opinião, estamos exaustos de pandemia e cuidados, mil recomendações, deprimente tudo isso.

Como, onde, então, buscar algum significado para as centenas e centenas de milhares de mortos, de sequelados, de enlutados, com esse vírus insidioso, traiçoeiro, maligno e tantas vezes mortal? Estamos cansados. Estamos deprimidos. Ninguém nos diz por quanto tempo teríamos de nos cuidar, de nos isolar, de viver uma vida mais sossegada, mais contemplativa, mesmo que o dia todo grudados nos notebooks e celulares e computadores com as imagens consoladoras de pessoas queridas.

Um ou outro, sim, refaz seu senso de vida, de relacionamentos, torna-se mais amoroso, mais aberto, mais generoso, e mais coerente consigo mesmo. 

Mas para a maioria é tudo insuportável, então vamos infringir. Doloroso engano, achar que pular por cima dos limites sensatos é encontrar a fruta mais gostosa e a diversão maior. 

Não é esse o significado do que nos acontece agora.

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