Nestes tempos em que nos sentimos mais sozinhos e ameaçados, alguém reclama de que falo demais na Senhora Morte, que tanto já me roçou com suas largas mangas.
Não creio no que se enxerga, mas nisso que se disfarça por mais que se tente olhar: assim fico seduzida. Eis o jogo que eu persigo, meu jeito de ser feliz, o desafio que me embala: sempre que escrevo “morte”, quem sabe estou falando da vida.
Não sou apenas devaneio. As lentes que me deram ao nascer são lúcidas como chuva que tornasse tudo áspero – não doce. Engano pensar que a arte afaga: ela me puxa pelos cabelos, me lança no olho da ventania. Combate meu grande inimigo, o tédio. Não durmo, não tenho complacência: cada palavra pesada, cada entrelinha apurada para que não escape nada do que vejo e sonho (e, às vezes, desejo). Tudo muito grave, tudo muito urgente.
A parte dura desta humana lida é dizer sim na hora do não, escolher mal entre silêncio e grito, entre a noite e a explosão do dia. Ceder quando devíamos negar, dizer não em lugar de afirmar, partir quando era bom amar, fechar-se em vez de resgatar a vida. Sermos incertos e indecisos, perdendo o trem, a hora, o agora: mas a gente não sabia.
Escrevo um conto sobre a Senhora Vida? Era uma vez um corredor de amores e uma casa ancorada no tempo para não naufragar. Era uma vez viagens e descobrimentos. Era uma vez uma infância dourada e um quebra-cabeça impossível de armar. Era uma vez – e ainda respira em mim como um cavalo alado – aquele mar. Quando perdi quase tudo, descobri que a dor não era maior que o sonho. Quando esqueci o caminho, vi que o horizonte ficava do lado errado. Quando só o meu rosto sobrava em cada espelho (e nada do lado de cá), juntei desalento e desejo e me reinventei com alguma audácia.
A cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios.
Pois o meu é o reino das palavras: nele tudo pode ser dito – a cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios. Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros, sacodem a cabeça – e não entenderão.
Porque eu falo para os da minha raça: os que atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, salvam vidas, varrem as ruas, arrumam os quartos, lidam na cozinha, mas vagam pela casa, coração pulsando forte, quando os outros ancoraram no sono. Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida – esta que escreve não sou eu, mas algo que escorre dos meus contornos como o som transbordava de uma concha na mão, naquela dourada infância.
E minha alma, inocente menina ou feiticeira perversa, desenrola este novelo de caos e luz soprando em teus ouvidos esses nomes, Senhora Morte, Senhora Vida, e, talvez mais importante e menos lembrada, a Senhora Esperança.