Nestes tempos impressionantes, em que seguidamente acordo pensando se estou num filme de ficção científica, talvez a mais impressionante imagem – gravada em mim para sempre – seja a de um ancião alquebrado caminhando sozinho, sob uma chuva fina, num dos lugares mais vastos, mais belos e solenes do mundo: a Praça de São Pedro, em Roma.
Não faço apologia do Papa nem da Igreja, nem de religião nenhuma. A mim neste momento interessa a simbologia pungente desta realidade: a humanidade parada, desaparecida de ruas, avenidas, praças e estradas em quase todo o mundo, como se a vida tivesse cessado. De alguma forma cessou aquela que conhecíamos antes.
Depois, por um trecho, o ancião se apoiou no braço de outro padre, talvez secretário. Mas sua solidão foi impactante, naquele espaço enorme, habitualmente fervilhando de gente. Beleza, imponência, arquitetura extraordinária, tudo reduzido a minúscula figura de um velho homem caminhando com dificuldade. Carregava nos ombros não só o peso da idade e de alguns achaques, mas deste mundo enfermo. Fisicamente muito enfermo, dramaticamente, tragicamente doente, com centenas de milhares de mortos, e grandes médicos e cientistas ainda sem saber direito como resolver tudo isso. Além do mais, grande palavrório, grandes cifras, muito desconforto e desamparo.
Não estou, hoje, a fim de panaceias, band-aids emocionais ou consolinhos. Pois estamos numa situação inédita, pior do que a Peste Negra da Idade Media, centrada na Europa, então ainda pouco populosa.
Agora, esta densa sombra, espessa e maligna, se estende pelo mundo inteiro, e atinge grandes centros onde vicejam a melhor tecnologia, ciência e medicina possíveis: agora todos perplexos e aflitos. Não há remédio, não há vacina à vista, não há nem informação segura do motivo de tantos se curarem, e tantos morrerem.
A Grande Peste, sem forma nem cor, ainda vai exigir muito de nós, do cidadão mais comum ao maior cientista e ao mais dedicado médico
Podemos chorar, rezar, esbravejar: ela vai colhendo aqui e ali, com sua grande foice, desconhecidos, amados, pais, e filhos, e amantes, não apenas velhinhos como se pensava de início. Qualquer um de nós que estamos hirtos em nossas casas. Há semanas não abraço filhos e netos, sobrinhos, amigas queridas. Numa quarentena sem previsão de fim, por sorte minha quase toda num lugar bucólico que é nossa casinha na Serra, mas começando a querer minha vidinha normal de volta... sem ideia do tempo sem tempo deste grande mal.
Há quem queira se confortar, e se conforta mesmo, prevendo que “logo vai passar”. Há quem faça ioga, oração, meditação, caridade, e tudo ajuda emocionalmente.
Mas A Grande Peste, sem forma nem cor, ainda vai exigir muito de nós, do cidadão mais comum ao maior cientista e ao mais dedicado médico, eles, sim, médicos e enfermeiros, os heróis desta guerra por enquanto inglória. Vai exigir sacrifício, empobrecimento, fragilidade, sequelas para alguns, morte de muitos.
A única coisa que não ajuda é raiva, é procurar bodes expiatórios, é irritação e agressividade – sobretudo com pessoas que amamos e com quem agora somos forçados a conviver o dia todo: essa, ah sim, a grande prova do amor, ou da farsa de um amor banalizado pela pressa, pela pouca presença, pela mínima tolerância, em tempos ditos normais...