Uma dessas manhãs de que, talvez bizarramente, eu gosto: chegar à janela e não encontrar o mundo. Em lugar do parque com seus mil tons de verde e manchas de árvores floridas, apenas esse tule estendido, vagamente ondulante, com poucas sombras de um cinza muito claro. Só junto das janelas, o vulto escuro e recortado de duas árvores.
Roubaram o mundo também? Quase sarcástica, penso: “Que alívio”.
Nada mais de inocentes mulheres, homens, crianças, bebês, esmagados por pequenos edifícios ilegais construídos por criminosos: todos sabiam que eram ilegais e sem a menor garantia – e ninguém fez nada, e muitos compraram sua própria morte porque aflitos e desamparados buscadores de um lar, uma felicidade.
Nada mais de centenas de vidas perdidas em rompimento de barragens negligenciadas ou deslizamentos de encostas onde ninguém poderia construir. Nada mais das loucuras ou cretinices de líderes por este planeta, nem uma venerada catedral quase milenar incendiada com a destruição de estruturas e imagens sem preço.
Nem rumores de que se pretende reconstruir em pouco tempo isso que foi perdido e deixou o mundo tão menor e mais pobre... com a bizarra afirmação de que agora a catedral “ficará muito mais bonita”.
Nada vai ser mais precioso do que as pedras, as traves de mil carvalhos e entalhes de artistas e artesãos medievais cujos suor e sangue e lágrimas, junto com a genialidade de arquitetos, planejaram e criaram aquela e outras maravilhas.
O perigo de termos uma Notre-Dame com trejeitos moderninhos quase me roubou o sono das últimas noites, mas agora o lago de tule me conforta um pouco: oblivion.
O perigo de termos uma Notre-Dame com trejeitos moderninhos quase me roubou o sono das últimas noites, mas agora o lago de tule me conforta um pouco: oblivion.
Por outro lado, sei que as coisas lindas continuam, as amizades raras e firmes, os amores ternos nas famílias apesar das brigas naturais; a delícia do bebê que tenta abrir a pálpebra da mãe que finge dormir, “olha pra mim, não dorme mais!”. O passo reconfortante no corredor; a Lua, as nuvens com seus contornos, as árvores com seus segredos, a chuva com seus murmúrios... e as artes, e os sentimentos, as dores e alegrias... e a eterna Senhora Esperança.
Enquanto em um brevíssimo momento penso em todas essas coisas, o coração vai se aquecendo devagar assim como essa lagoa de névoa se dispersa: o que é belo e bom e essencial ainda perdura como o sol que de repente inaugura os incríveis tons de rosa e lilás das paineiras logo ali, que parecem me chamar: estamos aqui, amiga.