Cinquenta anos foram suspensos no ar, postos entre parênteses, em mágica que só a arte consegue produzir; e uma multidão de mulheres e homens de 50, 60, 70, 80 anos reviu, reouviu, vibrou, chorou, sorriu, cantou. Foi forte e irrepetível. Dia 24 de março de 2023 no Araújo Vianna.
Desde uns dias antes do show e até agora estou ouvindo Almôndegas. Escuto, lembro, canto junto. Mas agora eu tenho 65 anos e não os 15 que tinha quando comecei a aprender a apertar as cordas de um violão emprestado (e de braço muito empenado) para montar os acordes de Vento Negro; Sombra Fresca e Rock no Quintal; Gô; Haragana; Até Não Mais; Daisy, my Love e assim ajudar a animar rodas de violão como as que geraram o grupo.
Tenho 65 e vou ajustando contas comparativas. Os Almôndegas foram uma versão concentrada de uma série de caminhos da canção popular brasileira e ocidental, com a vantagem de praticarem o mesmo sotaque que nós. A messiânica Vento Negro era uma milonga, mas irmã de toda canção de protesto focada no amanhã, que ia ser outro dia. O aspecto de turma de amigos solidários, que a gente praticava na esquina de casa, no clube, no colégio, lembrava direto o Clube da Esquina.
“No meio do banheiro universal”, verso de Sombra Fresca, encarnava aqui tanto Sá, Rodrix e Guarabira, Belchior e o Fagner inicial, quanto Crosby, Stills e Nash. A batida da bossa nova e seus acordes alterados, que tanto custava aprender, voltavam inteiros em Até Não Mais. O deboche divertido e leve dos Secos & Molhados ganhava eco em Androginismo; o vocal virtuoso do MPB4 descia do etéreo para ganhar a voz do grupo. E a herança dos Beatles por trás de tudo.
E tinha ainda, como o Arthur de Faria detalhou em um livro ainda inédito, uma imensa, intensa, decisiva leitura dos gêneros musicais e do horizonte poético locais, na explosão do novo gauchismo, aquela elétrica arena de atrito entre o tradicionalismo conservador e o nativismo latino-americanista progressista. Os Almôndegas foram, para gente como eu, a melhor interpretação dessa novidade, com um misto inesperado de respeito ao etos rural e desrespeito à caretice idem.
Meus caros setentões, vocês, nesse bolo de carne, sons, palavras, ideias e sentimentos, confirmaram uma certeza que decerto já tinham: os Almôndegas realmente tiveram a graça de encontrar o jeito certo de dizer como nos sentíamos, como aprendíamos a amar e a odiar, como desejávamos o futuro e como queríamos conversar com o passado – quer dizer, tudo que a canção sabe encarnar. Foi bom e é bom. Valeu.