“Que um indivíduo queira despertar em outro indivíduo recordações que não pertenceram senão a um terceiro, é um paradoxo evidente. Realizar com despreocupação esse paradoxo é a inocente vontade de toda biografia.” A frase, com esse drible temporal – recordações remetem ao passado, mas acontecem no presente –, com essa dupla negação (não – senão) e o ar sentencioso que sugere a compreensão de um mistério profundo, a frase abre o esboço biográfico de Evaristo Carriego, poeta argentino de escasso alcance. O biógrafo é Jorge Luis Borges.
Antes de ficar famoso com tigres e labirintos, Borges encontrou nesse poeta uma referência decisiva para sua própria adesão a um tema tido como menor, a cidade de Buenos Aires. Naquele momento, anos 1920, o que dava prestígio letrado eram os temas “universais”. Mas a intuição de Borges o conduziu a essa figura singela, que representou uma superação, um passo adiante, pela descoberta de que a vida “universal” se dá a conhecer em qualquer parte, até mesmo numa cidade como aquela em que se vive.
Em parte é precisamente este o encanto das biografias. Talvez não o despertar de recordações vicárias, mas o ganhá-las ao conhecer a vida do sonhador, que passa a ser nosso íntimo. A depender da qualidade do trabalho biográfico, naturalmente.
Um bamba na área, entre nós, é Ruy Castro. Por seu trabalho, Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda e um bando de músicos e poetas como aqueles que fizeram a Bossa Nova e o samba-canção se tornaram disponíveis para as novas gerações. Minucioso, paciente, pertinaz, dono de texto de imensa qualidade (humor não lhe falta, além de tudo), Ruy lançou faz pouco uma memória sobre como fazer justamente biografias.
É livro que se lê com gosto pelas infindáveis anedotas de bastidor sobre seu trabalho. Dificuldades de obter confirmação de um dado, coincidências redentoras, dados que permanecem opacos mesmo com muita batalha, além de conselhos práticos sobre como proceder ao escolher um biografável, catar e armazenar dados, etc., tudo isso o livro oferece em abundância.
Ao lê-lo, é possível retornar à frase de Borges acrescentando mais uma volta a esse parafuso infinito da leitura: A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia (Companhia das Letras) ajuda a saber mais dos biografados e muito mais do biógrafo por cujo trabalho ficamos sabendo daqueles sonhos.