Vista do céu, a área a ser desocupada é pequena, mas fará boa diferença para o aeroporto, que passará a contar com uns mil metros a mais de pista, permitindo o uso por aviões maiores e mais pesados. Vista pelo noticiário de rotina ou pelos órgãos executivos, privados ou públicos, trata-se de umas poucas centenas de famílias atravancando o progresso, umas famílias que precisam sair dali para o futuro chegar.
Mas como é olhar para esse contexto não do céu, nem dos gabinetes refrigerados, e sim a partir do solo, da lama elementar, do barro inevitável, da vida ao rés do chão que ali se estabeleceu por décadas? Como é viver a realidade imediata das casas que serão desocupadas, das famílias que serão desalojadas?
O leitor e a leitora por certo identificaram a área, em se tratando de Porto Alegre. Trata-se da região ao norte da pista do Salgado Filho, aeroporto ora administrado pela Fraport, empresa alemã contratada. Trata-se da vila Nazaré e da Ocupação Povo Sem Medo, onde viviam essas famílias, essas pessoas, as mais antigas há décadas por ali.
Estamos falando aqui a partir do belíssimo livro Dias de Destruir, de Construir – Uma Experiência de Extensão Universitária (editora Libretos), de Bruno César de Mello. Já a forma do livro merece aplauso: em sua configuração mais central, é um diário escrito pelo autor, professor da faculdade de Arquitetura da UFRGS que, entre 2019 e 2020, coordenou um projeto de extensão, como diz o subtítulo. Com colegas e alunos, Bruno se apresentou para aquele pessoal da Nazaré como um interlocutor, disponível para a conversa, para o aprendizado, para a contribuição de sua especialidade.
Um diário com as marcas do processo vivido à mostra: ele anota eventos, jeitos de pessoas, reflexões, dificuldades, alegrias, trazendo, de vez em quando, algum voo panorâmico em conceitos urbanísticos ou ideológicos, com Paulo Freire, Le Corbusier, Richard Sennett e muita literatura. E expressivas fotos, documentando sensivelmente momentos dessa história.
Dá gosto de ler, porque seu texto é de grande qualidade e porque a angulação da análise permite ver a área em disputa não a partir de um céu ideal, mas a partir da vida simples. Uma imagem, na página 40, resume bem: participando de uma festa junina na vila, Bruno fotografa um desses aviões, corriqueiros na região, de baixo para cima – dando a ver não o majestoso do voo, em panorama, mas a singeleza de quem conhece os aviões pela barriga e pelo barulho.