Um dos crimes menores praticados pelo governo federal que se despede foi a negligência com a passagem dos 200 anos da Independência. Qualquer governante dotado de visão elementar da história do país teria feito algum esforço para trazer o tema à tona – para celebrar, para discutir, para aproveitar-se dele inclusive.
Só não passou totalmente em branco a efeméride porque alguns intelectuais publicaram livros de relevo. Entre os que pude ler, quero destacar Adeus, Senhor Portugal – Crise do Absolutismo e a Independência do Brasil, de Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira (Companhia das Letras).
A primeira virtude a salientar é que o texto é primoroso: editado com os cuidados de textos de revistas culturais exigentes, os capítulos e as seções se deixam ler com grande fluência e clareza, sem nada parecido com o peso retórico que costuma estar presente em livros de historiadores.
A segunda é que o estudo serve a uma tese bastante original, que vem exposta com clareza e precisão: para muito além da dimensão política, da luta pelo poder entre grupos portugueses e brasileiros, Cariello e Zamberlan demonstram com números convincentes que uma crise fiscal foi a responsável por fazer a discussão política sair das alturas palacianas para o cotidiano dos cidadãos, na forma de uma carestia forte.
Dito de outro modo: os autores mostram que aquele debate conceitual sobre Independência, assim como aquela luta para decidir quem (a velha Corte ou os elementos burgueses brasileiros?) e como (monarquia? República? Com liberalismo e constituição?) mandava, acabou doendo mesmo foi no bolso da gente comum.
Uma terceira virtude: massas de dados da economia do período da Independência são trazidas e analisadas com serenidade, objetividade e, mais ainda, com consequências analíticas claras. Nunca havia ficado tão claro o peso da guerra da Cisplatina no contexto.
Já na primeira parte, o livro recompõe o debate historiográfico sobre a Independência, repassando as correntes até aqui existentes e examinando suas novidades e seus limites. Aparelhado com a melhor perspectiva histórica atual, aquela que enfrenta as dúvidas com perguntas bem feitas e mediante análise de dados objetivos, com uma visão cosmopolita, o livro é um grande feito intelectual, como o atestam, desde logo, os elogios que mereceu de gente de primeiro time, como Evaldo Cabral de Mello ou Kenneth Maxwell.