Um ano antes do Grito do Ipiranga, gesto histórico da Independência do Brasil, o então príncipe regente Dom Pedro I, aos 22 anos, envia uma carta ao pai, Dom João VI, suplicando pelo retorno a Portugal. “Peço a vossa majestade, por tudo quanto há de mais sagrado, me queira dispensar desse emprego que seguramente me matará pelos contínuos e horrorosos painéis que tenho, uns já à vista e outros muito piores para o futuro”, rogou.
Dom João VI havia voltado em abril de 1821 para Portugal, receoso com o risco de perder a coroa portuguesa após a Revolução do Porto, que culminou na instalação das cortes constitucionais de Lisboa. Tratava-se de um conjunto de parlamentares lusitanos que teria o dever de aprovar uma Constituição à qual o reinado da casa de Bragança teria de se submeter.
As cortes portuguesas haviam reduzido drasticamente os poderes de Dom João. Ele havia transferido a sede da monarquia para o Rio de Janeiro desde 1808, após ter de fugir com toda a corte devido à invasão do país pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte. Pedro havia sido deixado no Brasil pelo pai para que a família mantivesse as duas coroas, a portuguesa e a brasileira.
O cenário era angustiante, como se percebe pelo teor da carta, por motivos diversos. O mundo soprava ventos furiosos de revolução, o Brasil estava quebrado financeiramente e não tinha Exército ou Marinha de guerra organizados. Para piorar, Dom Pedro I era inexperiente e não recebeu da coroa portuguesa o mesmo grau de preparação dos herdeiros de outros tradicionais impérios.
As coisas mudaram rapidamente naquele final de 1821. Pedro I abraçaria a causa brasileira e desobedeceria às ordens das cortes portuguesas. Com o apoio da elite local e os conselhos da esposa Dona Leopoldina e do intelectual José Bonifácio de Andrada e Silva, galoparia ao Grito da Independência às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo. Neste 7 de setembro de 2022, o Brasil se encontra com a marca do bicentenário da Independência.
As cortes portuguesas, ressentidas com o fato de o Brasil ter sido promovido à condição de Reino Unido de Portugal e Algarves, em 1815, queriam novamente levar o país à condição de colônia. Nos 13 anos em que reinou a partir do Brasil, Dom João tinha promovido avanços notáveis no Rio de Janeiro, à época capital, com transferência da máquina de governo, inauguração de universidades, aceitação da imprensa e abertura dos portos para negócios com nações amigas, sem mais depender do monopólio e das taxas portuguesas. Essa última medida, em parte, foi tomada para beneficiar a Inglaterra, potência que estava em plena Revolução Industrial e que protegeu a corte portuguesa desde a fuga. O retorno à condição de colônia causava calafrios na pequena elite brasileira, composta sobretudo por senhores de terras, traficantes de escravos e comerciantes.
– O Rio se beneficiou imensamente da vinda de Dom João para o Brasil, e a elite começa a não gostar do que está sendo decidido em Lisboa. No final de 1821, chegaram decretos das cortes que levaram à reação, determinando que Dom Pedro voltasse a Portugal, que se fechassem os tribunais. Um retrocesso tremendo. São esses interesses que se movimentam no Rio para convencer Dom Pedro a ficar e desobedecer as cortes – afirma Isabel Lustosa, investigadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, autora da biografia D. Pedro I (Cia. das Letras, 2006).
De fato, a truculência das cortes foi decisiva para mudar o espírito do príncipe regente. O colonialismo estava em crise e em substituição na América. Depois de experimentar algum desenvolvimento com Dom João, a Independência do Brasil era considerada imparável.
– Portugal não tinha indústria, não tinha nada. E eles (Dom Pedro e Dom João) falavam sobre isso, que o Brasil não poderia mais ser sujeito a Portugal. Estava mais para ser o contrário. As cortes foram intransigentes em não perceber isso, não aceitar que o Brasil estaria em outro patamar (de possibilidades econômicas). Os portugueses precipitaram o 7 de Setembro – avalia o historiador e escritor Rodrigo Trespach, autor de Personagens da Independência do Brasil (Ed. 106, 2021).
A agressividade dos parlamentares portugueses, somada a mobilizações e históricos manifestos pedindo a permanência de dom Pedro no Brasil, muitos deles organizados pela maçonaria, foram determinantes para o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822.
– A maçonaria foi muito importante, a ponto de existir uma prova concreta de que ela adulterou a declaração do Dia do Fico. Dom Pedro tinha feito uma manifestação contemporizadora, dizendo que se demoraria no Rio até que o pai e as cortes decidissem seu destino. No dia seguinte, foi publicado nos anais do Senado do Rio a declaração famosa: “Como é para o bem de todos e a felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico”. Não foi literal. A maçonaria criou. E o José Bonifácio era grão-mestre da maçonaria – reflete, em entrevista a GZH, o jornalista e pesquisador Laurentino Gomes, autor do livro 1822 (Globo Livros, 2010).
Pouco depois do Fico, Dom Pedro I aceitou o título de “protetor e defensor perpétuo do Brasil”, uma busca das elites por comprometimento. A convocação de uma assembleia para redigir a Constituição do Brasil, em 1822, reforçava que a Independência estava a caminho. Logo adiante veio o brado “Independência ou Morte”, em São Paulo, em 7 de setembro de 1822, durante retorno de viagem a Santos (SP). Na ocasião, o príncipe foi informado em cartas enviadas por Dona Leopoldina e José Bonifácio sobre nova ofensiva autoritária das cortes, que estavam anulando suas decisões e reduzindo seus poderes a quase nada. Naquele momento, Dom Pedro I ganhava a história.
– Ele é um personagem central do Brasil, com todos os seus defeitos e indecisões. Ficou, aderiu à causa, lutou por ela durante um tempo. E se superou. Começou jovem e completamente despreparado, mas aprendeu muito na convivência com José Bonifácio – avalia Isabel.
O mapa do Brasil
Considerado o “Patriarca da Independência”, José Bonifácio era um intelectual e respeitado mineralogista na Europa. Era o principal ministro e conselheiro de Dom Pedro naquele período. José Bonifácio fez prevalecer a sua tese de que o melhor caminho para o Brasil era a monarquia constitucional – ou seja, ter um Imperador que reinaria sob uma Carta Magna. E a união seria consolidada com a liderança de Dom Pedro I. Para José Bonifácio, a alternativa da República, adotada em outros países do continente americano na mesma época, levaria à fragmentação do Brasil, que se dividiria em mais de um país, com guerras civis ou étnicas.
No aspecto territorial, José Bonifácio mostrou-se visionário: o formato atual do Brasil é muito semelhante ao adotado em 1822. Contudo, a tentativa de evitar conflitos não obteve sucesso. As guerras da Independência foram marcadas pelo sufocamento de províncias que se rebelaram contra a monarquia. Foram abafados, com muitas mortes, movimentos republicanos como a Confederação do Equador, em 1824, em Pernambuco. E houve o caso de províncias que se mantiveram fiéis às cortes portuguesas, como a Bahia, devido à grande concentração de tropas portuguesas. Em vitória fundamental, a esquadra lusitana foi posta para correr do chão baiano em 2 de julho de 1823. Planejando os combates, o Brasil contratou mercenários para liderar o Exército e a Marinha, sendo os mais notáveis o general francês Pierre Labatut e o almirante escocês Thomas Cochrane – este último ficou famoso por glórias em batalhas, mas saiu como vilão da história por ter saqueado cidades brasileiras do Norte.
Para Gomes, a figura de Dom Pedro I fez a diferença:
– Sem ele, o Brasil provavelmente teria se tornado Republicano e se fragmentado em vários países independentes.
A escravidão foi o bode na sala dos movimentos liberais dos séculos 18 e 19. Defendiam liberdade e direitos civis, mas não botavam a mão no vespeiro porque o trono dependia do apoio dos fazendeiros. Dom Pedro e José Bonifácio ficaram reféns. Esse era o alicerce da monarquia brasileira. Quando caiu a escravidão (em 1888), caiu a monarquia (em 1889).
LAURENTINO GOMES
Jornalista e escritor, autor, entre outros, de "1822"
O Brasil, aos trancos, resistiu às tentativas portuguesas de retomada. As cortes perderam força em meados de 1823, e Dom João VI retomou poder. No novo arranjo político, Portugal reconheceu a Independência do Brasil em 1825, gesto que foi seguido por outras nações.
– Portugal não tinha mais o poderio de outras épocas. Era um país que explorava o Brasil, mas não desenvolveu sua economia, era dependente da Inglaterra. Diante de um país continental como o Brasil, não tinha mecanismos – avalia Trespach.
Pedro I era de temperamento difícil, pouco ilustrado, exagerado nas suas reações e, por vezes, violento. Não era intelectual, mas destacava-se na música. Era considerado um liberal, defensor de constituições para que imperadores observassem leis, uma evolução ao absolutismo. Pedro I, contudo, tomou decisões autoritárias: uma delas foi a dissolução da Assembleia Constituinte brasileira em novembro de 1823, devido a divergências, que ele próprio havia convocado. A primeira carta de leis do Império do Brasil, de 1824, mais longeva da história, foi considerada avançada e liberal para a época, mas não foi a Constituinte que a chancelou. O Imperador determinou prisões e exílios, inclusive do seu antigo mentor, José Bonifácio. O temperamento do rei, a ambiguidade na relação com as coroas brasileira e portuguesa e as constantes humilhações impostas à popularíssima esposa, Dona Leopoldina, engoliriam a aura heroica. Também soou mal a notícia de que o Brasil havia concordado em indenizar Portugal no tratado de reconhecimento da Independência, após três séculos de colonização.
Para pesquisadores, 1826 foi determinante para a sua ruína no Brasil. Naquele ano, Dom João VI morreu e Pedro I, Imperador do Brasil, herdou ao mesmo tempo a coroa portuguesa. Ele logo abdicou em nome da filha, que mais tarde tornaria-se a Imperadora Maria II, e a casou com seu irmão, Dom Miguel, para assegurar o poder da casa de Bragança nos dois lados do Atlântico. Apesar do arranjo familiar, Dom Pedro I passou a se envolver cada vez mais em assuntos portugueses. Havia rumores da existência de um gabinete secreto para tratar de assuntos lusos desde o Rio.
– Ele se equilibra precariamente entre os interesses brasileiros e portugueses. Os brasileiros perceberam e houve acirramento. Isso levou à noite das garrafadas, antes da abdicação, em que portugueses foram caçados nas ruas a porrete e a caco de vidro – narra Gomes.
No mesmo 1826 veio a morte de Dona Leopoldina, que havia passado por profundas humilhações impostas pelo marido. Dentre muitas amantes, Dom Pedro teve predileção por Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, a quem inclusive deu função dentro da corte.
– Leopoldina passa por um processo depressivo grande. Dom Pedro exagera nas aparições e viagens com Domitila e também na proteção à família dela, com distribuição de títulos e benefícios até para o ex-marido. Muito isolada e injustiçada, acabou morrendo no final daquele ano (antes dos 29 anos) – relata Isabel.
Leopoldina era querida entre os escravos, conhecida por distribuir dinheiro aos miseráveis, e sua morte causou revolta. O povo apedrejou a casa da marquesa de Santos.
No mesmo ano, a oposição ao Império voltava a ganhar força. A Cisplatina (atual Uruguai), anexada ao Brasil por Dom João VI, havia se tornado motivo de guerra. O Brasil tentou manter o território e saiu duramente derrotado. A luta foi impopular, com muitas baixas. Também fez parte do caldo de insatisfação o fato de a Independência não ter mudado a vida dos miseráveis. O Brasil “rompeu os vínculos com Portugal e manteve a estrutura social vigente”, avalia Gomes.
– Dom Pedro se perde no roteiro da vida por uma série de fatores que acontecem em 1826. E ele vai acabar sendo quase que posto para correr daqui em 1831 – diz Trespach.
Em 7 de abril de 1831, na madrugada, Dom Pedro I abdicou do trono brasileiro. Ele deixou quatro filhos no Brasil, sob a tutela de José Bonifácio – seu antigo mentor e, depois, inimigo. Um dos que ficaram foi seu herdeiro Dom Pedro II, ainda criança, que seria o Imperador do Brasil entre 1840 e 1889, após o período regencial.
– A legitimidade de Dom Pedro foi erodindo de maneira que, rapidamente, ele se converte de herói em vilão – diz Gomes.
Apesar das contradições, Trespach avalia que a brasilidade do Imperador de origem portuguesa era genuína. Ele, de fato, havia se afeiçoado ao Brasil, apesar da constante dubiedade com as coisas de Portugal. Depois de abdicar ao trono brasileiro em favor do filho, voltou a Portugal e liderou uma guerra civil contra o irmão, Dom Miguel, que havia se tornado absolutista. Venceu, assegurou outro trono para a dinastia de Bragança, desta vez para a filha, Maria II, e virou herói do liberalismo português. Morreu aos 36 anos, no Palácio Queluz, em Portugal, no mesmo quarto em que havia nascido.
Para Gomes, Dom Pedro I foi um “meteoro que cruzou os céus de Brasil e Portugal, um personagem fascinante”.
Tempos de imigração
Antes do 7 de Setembro de 1822, José Bonifácio enviou um homem de confiança à Europa para uma missão importante: recrutar soldados alemães que pudessem lutar contra tropas portuguesas e famílias de colonos que formassem uma colônia rural-militar no Brasil.
– Armar os escravos era “extremamente perigoso”. Em 1804, o Haiti proclamou sua Independência e, como consequência, houve um levante de escravos contra os senhores franceses que dominavam a colônia. Eles mataram todos os brancos. Não se desejava transformar escravos em soldados. A opção foi procurar fora do Brasil – detalha Martin Dreher, doutor em História pela Universidade de Munique.
O médico alemão Jorge Antônio von Schaeffer, que havia se tornado ajudante de ordens de Dona Leopoldina, partiu com as instruções de recrutamento de José Bonifácio. Naquela época, importar soldados europeus estava proibido. Desta forma, a solução foi trazê-los camuflados entre famílias de colonos, como se fossem trabalhadores solteiros.
A primeira turma de von Schaeffer veio de Hamburgo, cidade portuária em que pessoas orbitavam esperando um navio para ir embora em busca de oportunidades. Na leva inaugural, os casais foram enviados a Nova Friburgo (RJ). Com os solteiros que chegaram ao Rio de Janeiro, Dom Pedro I começou a formar dois batalhões de estrangeiros.
– Eles vão intervir, por exemplo, contra tropas portuguesas na Bahia (que tentavam retomar o controle do Brasil desde a região) – diz Dreher.
O historiador explica que, a partir da segunda leva de mercenários e famílias de colonos, foi iniciada a imigração alemã no sul do Brasil.
– Uma segunda área importante de recrutamento vai ser o grã-ducado de Meclemburgo-Schwerin (norte da Alemanha). As pessoas estavam sem trabalho e, de fato, na cadeia. Em troca do indulto, foram colocadas à disposição de von Schaeffer, levadas acorrentadas aos navios e despachadas ao Brasil. Os solteiros ficam no Rio e, agora, a novidade: os casais são mandados para o sul para formar a colônia alemã de São Leopoldo. Os primeiros chegaram em julho de 1824 – relata Dreher.
A imigração alemã planejada por José Bonifácio tinha objetivo de segurança nacional, com ocupação de território, e também de busca por força de trabalho que representasse alternativa aos escravos, já que a Inglaterra pressionava pela abolição. Por trás da parte mais visível do plano, havia a intenção de promover um “branqueamento da raça”. A Independência, que agora completa 200 anos, foi determinante para a imigração germânica, processo que transformou a cultura do Sul.
– A colônia alemã de São Leopoldo é consequência da proclamação da Independência – analisa Dreher.
A Independência ano a ano
- 1808 – Chegada da família real portuguesa ao Brasil colônia e abertura dos portos
- 1815 – Promoção do Brasil ao status de Reino Unido a Portugal e Algarves
- 1820 – Revolução do Porto. Processo culmina na instalação das cortes constitucionais de Lisboa, cujo objetivo é escrever leis que limitem os poderes de Dom João VI
- 1821 – Em abril, pressionado pelas cortes e sob risco de perder o trono, Dom João VI retorna a Portugal. Dom Pedro torna-se príncipe regente do Brasil e a dinastia de Bragança mantém as duas coroas
- 1822 – O Dia do Fico ocorre em 9 de janeiro. A crescente tentativa das cortes de recolonizar o Brasil precipita a Independência, proclamada em 7 de setembro
- 1823 – Em julho, tropas portuguesas são expulsas da Bahia pelas recém-organizadas forças armadas brasileiras
- 1826 – Morrem Dom João VI e Dona Leopoldina
- 1831 – De herói a vilão, Dom Pedro I abdica ao trono brasileiro em nome do filho Pedro de Alcântara, ainda criança. Pedro I volta a Portugal e conquista o trono lusitano para a filha Maria II, em uma guerra civil contra o irmão
- 1834 – Aos 36 anos, Dom Pedro I morre em Portugal