Por Eder Silveira
Historiador, professor na UFCSPA
Os ritmos de nossas pesquisas e interesses acadêmicos não costumam ser ditados pela agenda das efemérides nacionais. Ainda assim, essas datas são uma ótima oportunidade para nos aproximarmos do debate público, atraindo os curiosos e examinando alguns dos elementos da agenda oficial de comemorações.
Muitas dessas celebrações, dado o seu conteúdo político, ensejam intensa disputa narrativa e simbólica em torno da história e da memória. Nas últimas décadas, efemérides como os 500 anos da conquista do Brasil pelos portugueses e o bicentenário da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro criaram uma interessante agenda de debates sobre nossa história. O ano de 2022, um dos mais intensos das últimas décadas, além de nos colocar imersos nas discussões em torno do bicentenário da Independência do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna, exige mais uma vez a nossa presença no debate público.
O modo como comemoramos, ou seja, como lembramos juntos, como escolhemos pensar um ou mais eventos de nossa história, fala muito mais das aspirações do tempo presente do que do momento histórico a ser examinado. O centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, por exemplo, mobilizou inúmeros artistas e intelectuais brasileiros que buscaram na liberdade artística e na pesquisa estética que a marcou a inspiração para pensar um Brasil moderno, criativo, embalado pela poesia, pela música e pelas artes visuais. Foi também tempo para balanços críticos e para apontar limites desse marco de origem da arte moderna no Brasil, trazendo à cena atores ignorados pelas elites intelectuais de então, como mulheres, afro-descentes e povos originários.
Já o bicentenário da Independência parece ter sido galvanizado pelas comemorações oficiais. Salvo eventos acadêmicos e algumas publicações de grande envergadura, dentre as quais destaco o Dicionário da Independência do Brasil – História, Memória e Historiografia, organizado por Cecília Helena Salles de Oliveira e João Paulo Pimenta, parte importante dos intelectuais e da opinião pública sente-se afastada do bicentenário da Independência, muito em função da instrumentalização política do evento pelo governo federal.
Ao aceitarmos discutir a Independência a partir do gesto de D. Pedro I, em 7 de setembro de 1822, gesto este muito mais prosaico e atrapalhado do que a iconografia oficial nos faz acreditar (bastaria pensarmos na pintura de Pedro Américo, Independência ou Morte!, de 1888, que coloca o português em cima de um belo cavalo e de espada em riste, quando os registros indicam que ele estava no lombo de um burro e com graves problemas intestinais), estamos ignorando um conjunto de tensões que antecedem e excedem o marco histórico instituído. Tiramos o povo da cena e colocamos em primeiro plano uma imagem militarizada de Dom Pedro I, apresentando-o como autor de gesto de bravura heroica, escamoteando os movimentos que exigiam a independência desde o final do século 18 e os movimentos regionais de natureza separatista, que vieram até a metade do século 19.
A nossa independência pode e deve ser pensada como o fruto do confronto de diversos projetos de nação, assinados por incontáveis mãos, que traduziram os sonhos de muitos brasileiros. No entanto, especialmente a partir dos tempos da ditadura civil-militar (1964-1985), passou a ser um evento militarizado, espaço de discursos ufanistas e demonstração de poderio bélico, ao sabor das paradas militares dos totalitarismos que marcaram o século 20. O 7 de setembro, militarizado, coloca o povo à margem das avenidas, como mero espectador da marcha dos militares que se apresentam como condutores do processo de libertação nacional.
O sesquicentenário da Independência do Brasil, comemorado em 1972, em meio ao sangrento governo Médici, teve como cereja do bolo a chegada dos restos mortais de Dom Pedro, sepultado com honras na Cripta Imperial, localizada no Parque da Independência, em São Paulo. Em 2022, o ponto culminante das comemorações do bicentenário é a chegada, a passeio, do coração de Dom Pedro. Escolhemos, mais uma vez, celebrar um personagem da história, tornado herói, cultuando seu corpo, morto. A imagem da história que se repete como farsa, apesar de batida, me parece útil nesse mórbido teatro de memória e política que vivemos. Como disse Bertolt Brecht, pobre do povo que precisa de heróis.