Por Clovis Bulcão
Historiador e autor de “Leopoldina, a Princesa do Brasil” (ed. Rocco, 2006), entre outros
Em São Paulo, em 2012, quando exumaram o corpo de dona Leopoldina, a principal preocupação da legista foi conferir se o fêmur da primeira Imperatriz do Brasil estava fraturado. Uma informação que nunca constou dos relatos dos médicos que trataram da jovem em seu leito de morte. Como ninguém sabe, e provavelmente jamais saberá, o que aconteceu no palácio da Quinta da Boa Vista entre Dom Pedro I e sua esposa que estava grávida, esse tipo de especulação segue viva. Que a austríaca sofreu algo terrível parece ser bem plausível. Tudo indica que a tese da fratura foi espalhada desde Viena, em 1826, pela família Habsburgo e sobreviveu ao tempo, aproximadamente 200 anos, e ao espaço. Talvez nunca antes na história deste país um boato tenha tido uma sobrevida tão expressiva, um verdadeiro escândalo!
Os eventos que marcaram o 7 de setembro de 1822 representaram para Leopoldina, então com apenas 25 anos, o apogeu e o início de seu trágico fim. Poucos sabem, mas nesse dia ela estava no comando do Brasil. Na ausência do marido, que se encontrava em São Paulo, ela era a Regente. É importante lembrar que Leopoldina era filha do Imperador da Áustria, Francisco I, e fora educada sob a supervisão do Príncipe von Metternich, um conservador que se destacou na luta contra os movimentos revolucionários na virada do século 18 para 19. Pouco antes de embarcar para o Novo Mundo, ela foi advertida sobre os perigos dos movimentos liberais. Afinal, sua tia avó, a Rainha Maria Antonieta, fora vítima dos revolucionários franceses.
No entanto, após o retorno de Dom João VI para Portugal, em 1821, ela foi aos poucos se envolvendo com os acontecimentos que culminariam na emancipação do Brasil. Quanto mais os portugueses assediavam o poder de seu marido, mais destemida ela se apresentava. Foi nesse momento que Leopoldina se aproximou de José Bonifácio, que entraria para a História como o Patriarca da Independência. O Grito do Ipiranga foi dado após a leitura de suas cartas escritas na Corte poucos dias antes. Dom Pedro, 23 anos, na mesma viagem, conheceu e se apaixonou de forma avassaladora por Domitila de Castro Canto e Melo, 24 anos. Antes do fim daquele ano, a amante do agora Imperador já estava morando no Rio. Quanto mais tórrido ficava o romance, mais escândalos eram produzidos: Leopoldina era obrigada a aturar a amante, e depois sua filha, nas dependências do palácio de São Cristovão; em 1826, em viagem à Bahia, Dom Pedro levou no mesmo barco a esposa e a amante; pouco antes da morte de Leopoldina, em dezembro de 1826, ele praticamente não dormia mais em casa, algo impensável até para os padrões do século 19.
Domitila não só produzia escândalos no campo dos costumes, mas também em uma seara bem cara aos brasileiros, a corrupção. A família Canto e Melo recebeu muitos favores do Imperador, e mesmo isso não foi suficiente para mantê-la afastada dos interesses públicos. Existem fontes muito confiáveis que contam como Domitila resolvia problemas administrativos em troca de polpudas propinas, aparentemente estimulada pelo próprio amante. O comércio de favores era de tal ordem que sua casa, bem na entrada do palácio imperial, transformou-se em um ponto de encontro de políticos e de membros do corpo diplomático.
Se tudo isso já não fosse absurdamente escandaloso, coube aos intelectuais brasileiros colocarem a cereja do bolo. Ao longo destes últimos 200 anos, a figura de Leopoldina foi eclipsada pela de Domitila. Uma era “alemã”, feia, gorda e pobre (os Bragança não honravam os pagamentos de sua mesada estipulada em contrato nupcial); a outra era brasileira, morena, depois ficou rica e, segundo a própria Leopoldina, “um monstro de sedução”.
O escritor paulista Paulo Setúbal, em seu livro A Marquesa de Santos (1925), praticamente ignora a imperatriz. Na década de 1930, o historiador baiano Pedro Calmon, em sua História do Brasil, descreveu a morte da austríaca em um pé de página: “Faleceu D. Leopoldina, em consequência de parto prematuro, a 11 de Dez. de 1826”. Em 1972, para festejar os 150 anos da nossa emancipação, filmaram Independência ou Morte (de Carlos Coimbra). O badalado casal Tarcísio Meira e Glória Menezes estrelava a produção, ele como Pedro e ela como Domitila.
A história de Leopoldina, e a história de sua história, têm muitos segmentos do DNA da sociedade brasileira: desprezo pelo protagonismo feminino, violência doméstica, machismo, preconceito e esquecimento.