Não é de hoje que se impõe a impressão de que as coisas estão acontecendo mais rapidamente do que nunca, comprimindo no presente as fases da história de um passado que não termina de passar. Não parece? As demonstrações golpistas diante de quartéis, incluindo cenas de perfeita demência, foram em 1964, na eleição de 2018, na semana passada ou agora de manhã mesmo?
E as efemérides, que repõem o passado no presente: há cem anos nasceu Décio Freitas, assim como Darcy Ribeiro. Olhando de agora, o apreço dos dois pelo Brasil, pelo futuro do povo que vive aqui, parece uma coisa desaparecida há milênios, dada a ubiquidade da falta de perspectiva de longo prazo, que é a contraparte da imposição do presente eterno.
E a duração estendida do que tem valor: Bebeto Alves, tristemente falecido há poucos dias, é da geração que na prática inaugurou a canção popular moderna entre nós, com os mais velhos Almôndegas/Kleiton e Kledir, Hermes Aquino e Raul Ellwanger, os contemporâneos Nelson Coelho de Castro, Vitor Ramil e Nei Lisboa. São gente de valor imenso para a maturação do sistema cultural local, em plena vida útil.
A também recente morte da Gal Costa chama a atenção, de modo enviesado, para os aniversários de 80 anos celebrados neste estranho 2022. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Benjor, Milton Nascimento, agora Paulinho da Viola (mais Tim Maia, Nara Leão e Clara Nunes, que se foram antes da hora). Toda uma geração – a mesma de Paul McCartney, vivo e são de lombo, e de Jimi Hendrix, afogado no passado – que botou de pé um cancioneiro infinito de beleza e profundidade, que nunca vai terminar de espalhar seu encanto.
Para celebrar essa beleza, vai uma recomendação: Letras, de Caetano Veloso, pela Cia. das Letras. As 390 canções de sua autoria vêm na íntegra, todas, com índices e discografia – mas o organizador, Eucanaã Ferraz, em lugar de oferecer a ordem cronológica, que ajuda a entender tudo, resolveu começar pelo presente, com Meu Coco, de 2021, em primeiro lugar, até Sim, Foi Você, de 1965. Um capricho tolo, que atrapalha bastante, mas não o suficiente para estragar o gosto por frequentar essa obra maiúscula do mundo letrado brasileiro.
E vai outra, muito melhor como trabalho editorial: Todas as Letras de Gilberto Gil, edição atualizada, com organização de Carlos Rennó (também Cia. das Letras), que respeitou a ordem dos acontecimentos e ainda acrescentou informações sobre muitas das canções, ampliando o universo do leitor.