O Modernismo paulista vai completar cem anos em fevereiro próximo. Imagino que vá ser uma festa superior à do bicentenário da Independência, em setembro. São Paulo, sede da força da grana que ergue e destrói coisas belas, tende a se ocupar mais de si mesmo do que do país como um todo.
A força da ideologia modernista paulista é tal que parece impossível pensar sobre a cultura letrada brasileira a partir de outros paradigmas. Mário de Andrade e Oswald também de Andrade parecem estar no centro inevitável do que o Brasil faz, pensa, escreve, filma, esculpe, pinta.
Ruy Castro tem oferecido sua parte, preciosa parte, para dar a ver outros parâmetros. Ano passado lançou o sensacional Metrópole à Beira-mar, um passeio pelo Rio de Janeiro dos anos 1920 que recupera a presença viva de escritores — e escritoras —, mas também intelectuais, cancionistas, músicos, dançarinos, atores, um sem-fim de gente que fazia da então capital federal um cadinho quente, em que ferviam todas as ideias e misturas possíveis, da mais sofisticada importação de Paris às mais pé-no-chão das criaturas artísticas do país, o samba e o Carnaval, formas superiores de nossa cultura.
Agora, ele lança livro de igual valor: As Vozes da Metrópole – Uma Antologia do Rio dos Anos 20 (Cia. das Letras). Ruy Castro compila aqui frases, poemas, crônicas, ensaios, ficções, de 41 escritores, seis dos quais mulheres. A leitura proporciona um exemplo vivo das possibilidades de relativização da ideologia modernista paulista, porque mostra a presença de itens temáticos e formais que a dita hegemonia paulista insiste em privatizar como mérito exclusivo da Semana de Arte Moderna e seus protagonistas.
Nada disso. Cultura popular urbana, inconformismo, conflitos sociais, feminismo na prática, arguição da moral pequeno-burguesa, defesa de estados alterados de consciência, complexidade cultural para muito além da matriz parisiense (que também aqui existe), ironia, desejo e prática de liberdade, pode escolher: tudo isso os escritores sediados no Rio do tempo oferecem.
(O que é que não tem? Nacionalismo, indianismo literário, ânsia de ruptura. Isso sim é que nasceu, ou renasceu, com o Modernismo paulista.)
O novo livro mostra, na prática, o que a cultura no Brasil já foi capaz de produzir sem depender do que fizeram os paulistas — que naturalmente têm todo o direito à existência, mas que cada vez são menos razoáveis na fantasia de terem inventado a liberdade, a ousadia, a vida moderna entre nós.