Biscoito fino: saiu um livro de poesia, além de lindo, profundo e iluminador – João e Maria – Dúplice Coroa de Sonetos Fúnebres, de Leonardo Antunes, com ilustrações sensacionais de Augusto Lima (editora Patuá). O poeta é professor de Grego clássico na UFRGS, parte da nova geração desse metiê raro entre nós, e pratica a tradução. E é poeta.
Poeta ousado, capaz de conceber essas duas coroas de sonetos. Já soneto sabe como é: rigor, forma fixa, que obriga a uma disciplina que muitas vezes descamba para o artificialismo, o poeta fazendo truques e mágicas para manter os esquemas formais. Mas aqui não, creia: o poeta tem uma fluência na linguagem que faz parecer simples o percurso até o resultado.
E coroa é o seguinte: um soneto inicial, espécie de súmula que vai ser retomada, verso a verso, nos sonetos seguintes, cada qual iniciando com uma das linhas do primeiro soneto, mas desenvolvendo o tema. Leonardo Antunes faz duas vezes esse milagre, com leveza e rigor, e mais – narrando a história de um João depressivo e suicida e a história de uma Maria trabalhadora braçal, com destino talvez mais funesto ainda. Sensacional, e imperdível para quem gosta de poesia e de ousadia.
Mário de Andrade cita, no Prafácio Interessantíssimo, uma frase de certo Gorch Fock, poeta germânico da virada do século 19: “Toda canção de liberdade vem do cárcere”. Isso nunca me saiu da cabeça. A frase, em sua natureza opositiva e tensa, desvela o sentido geral da busca humana. Bem assim eu penso sobre a bela peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que o Em Cena trouxe à cidade. Ali, com o corpo e a voz de quem não é tratado como igual, o que temos é a reiteração da ideia – a reivindicação de igualdade provém, só pode vir, de quem não é tratado como igual. Mas somos todos iguais, inclusive, para quem é deste ramo, no amor de Deus que a peça delicadamente reafirma.