Não foi o melhor espetáculo do 24º Porto Alegre Em Cena, mas O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi o mais impactante no que diz respeito a seu significado. A polêmica em torno do espetáculo – ameaçado de proibição na Capital devido a uma ação na Justiça movida por um advogado que alegou ofensa à fé – levou outros artistas a se manifestarem, ao final das apresentações, em defesa da liberdade de expressão. Potencializou o teor político de uma programação já crítica em seu conteúdo.
Com esquema reforçado de segurança na Casa de Cultura Mario Quintana, as duas apresentações da montagem do texto da escocesa Jo Clifford, que imagina Jesus corporificado na atriz travesti Renata Carvalho, tornou-se uma peça de resistência. Prestigiada por uma plateia repleta de artistas e intelectuais, a montagem dirigida por Natalia Mallo atualizou as mensagens bíblicas de amor, tolerância e fé.
Apesar do clima de tensão pela possibilidade de protestos, que não ocorreram, O Evangelho... acabou sendo um dos pontos altos de uma programação qualificada que selou a primeira edição do Em Cena sob comando de Fernando Zugno. O novo coordenador-geral não é nenhum estranho no ninho: é braço-direito de Luciano Alabarse, idealizador do festival e coordenador-geral em quase todas as edições. Mesmo com uma grade de atrações enxuta devido à crise econômica que tem afetado o financiamento à cultura, o Em Cena inovou neste ano em relação à sua história ao contar com uma espécie de linha curatorial que destacou o protagonismo feminino.
Estiveram presentes nos palcos da Capital estrelas como Angélica Liddell, Juliana Galdino, Nathalia Timberg, Clara Sverner, Georgette Fadel, Denise Weinberg, Grace Passô, Andrea Beltrão e Drica Moraes. O Prêmio Braskem Em Cena coincidentemente reconheceu grandes mulheres do teatro gaúcho, como Patrícia Fagundes (diretora de Fala do Silêncio, eleito o melhor espetáculo), Priscilla Colombi (melhor atriz pelo mesmo trabalho) e Jezebel De Carli (melhor diretora por Ramal 340).
Com pouca diversidade regional, a programação nacional foi quase toda integrada por espetáculos do Rio e São Paulo, mas contou com ótimos trabalhos. Do Uruguai, veio o "concerto de dança contemporânea" Big Bang, atração com proposta diferente do teatro realista do país vizinho que costumava desembarcar no festival. A reflexão crítica foi turbinada por debates sobre a mulher na cena, a mulher negra na dramaturgia e o movimento trans nas artes, entre outros temas. Outra novidade foram as Sessões Malditas à meia-noite no Centro Municipal de Cultura, ponto de encontro desta edição, com direito a food trucks.
Liddell desconcertou os espectadores
Entre os 14 espetáculos aos quais assisti, o mais ovacionado foi Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos, contundente homenagem idealizada por Gabriela Carneiro da Cunha às mulheres que lutaram na Guerrilha do Araguaia durante a ditadura militar. O espetáculo dirigido por Georgette Fadel e escrito por Grace Passô chegou em um momento no qual a narrativa histórica tem sido cada vez mais ameaçada pelo revisionismo. Há tempos que fazer arte não parecia uma atividade tão perigosa.
Angélica Liddell estabeleceu uma tensa negociação com a tradição judaico-cristã
Com um público bem menor do que merecia, pelo menos na sessão em que estive, a multi-artista espanhola Angélica Liddell desconcertou o público com o espetáculo Gênesis 6, 6-7 na estreia de sua companhia Atra Bilis em Porto Alegre. Mais uma vez, o Em Cena trouxe o melhor da produção mundial para os nossos palcos. Até espectadores familiarizados com os caminhos da cena contemporânea saíram do Teatro do Sesi atônitos com a performance repleta de imagens surreais que nem sempre pareciam se conectar claramente umas às outras. Angélica estabeleceu uma tensa negociação com a tradição judaico-cristã como se quisesse, ao mesmo tempo, retornar a uma essência perdida e contestá-la violentamente. A força poética da performance, que frustra quem busca um entendimento rápido, no longo prazo planta uma semente de inquietação que enriquece a experiência estética.
Reverenciando a tradição em uma chave mais positiva, Andrea Beltrão e o diretor Amir Haddad buscaram a tragédia de Sófocles para transformar Antígona em uma jornada por alguns dos mitos fundadores do Ocidente. Recontando as histórias sem qualquer pretensão de erudição, Andrea se valeu de uma linguagem acessível mas carregada de energia teatral para evidenciar a permanência dos mitos, lançando discretos e inteligentes comentários, às vezes bem-humorados. O 24º Porto Alegre Em Cena mostrou, enfim, que a arte resiste, mas é preciso defendê-la com heroísmo.