Um advogado entrou na Justiça nesta segunda-feira (18) pedindo a proibição do espetáculo teatral O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu dentro da programação do 24º Porto Alegre Em Cena. As apresentações estão marcadas para esta quinta (21) e sexta (22), às 22h, no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Os ingressos estão esgotados.
A montagem é estrelada pela atriz e ativista Renata Carvalho, com 20 anos de carreira no teatro. De acordo com o material de divulgação do festival, "a peça provoca reflexão ao expor problemas sociais, ao mesmo tempo em que emite uma mensagem de amor, perdão e aceitação. A identidade travesti é elemento-chave do espetáculo, que propõe uma transformação do olhar diante de identidades marcadas pelo estigma e pela marginalização".
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Na petição ajuizada contra o município de Porto Alegre, esfera que realiza o festival, e contra a Pinacoteca Ruben Berta, onde ocorreriam as apresentações antes de serem transferidas para o Teatro Bruno Kiefer, o advogado Pedro Lagomarcino define o espetáculo como "um verdadeiro escárnio, um deboche psicodélico de mau gosto, haja vista que subverte questões religiosas e macula o sentimento do cidadão comum, avesso a esse estado de coisa". A Procuradoria-Geral do Município afirma que ainda não foi notificada do processo.
Lagomarcino pede a suspensão das duas sessões em caráter liminar e depois o cancelamento definitivo com base nos artigos 208 e 287 do Código Penal e no artigo 20 da lei 7.716/89. O artigo 208 do Código Penal fala sobre "escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". O artigo 287 trata de "fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime". Já o artigo 20 da lei 7.716/89 se refere ao ato de "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".
Em entrevista à reportagem de Zero Hora, Lagomarcino argumenta:
— Entrei com a ação porque o espetáculo propõe o retorno de Jesus como travesti. Isso é um vilipêndio religioso. Desrespeita a religião cristã, católica e espírita. Para essas religiões, Jesus Cristo é o filho unigênito. Se o Pai Celestial escolheu Jesus Cristo, não é o homem que pode propor a vinda dele como travesti. Isso eu achei de mau gosto, para ser educado. É um escracho com essas religiões.
O advogado afirma, ainda, que não assistiu à peça e que baseou a ação em textos publicados na imprensa.
A percepção do advogado sobre o espetáculo é contestada pelo secretário de Cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, que idealizou o Porto Alegre Em Cena e foi seu coordenador-geral até o ano passado. Para o titular da pasta, é "equivocado" afirmar que a peça propõe o retorno de Jesus como travesti:
— Não existe nada parecido com essa leitura em qualquer momento da peça. A atriz diz trechos dos Evangelhos para pedir tolerância e amor. Ela deixa muito claro que a personagem não é Jesus, mas usa de ensinamentos dele para busar seu apaziguamento interior, que é o papel de todas a religiões. Elas nos transformam em pessoas melhores.
Ainda segundo Alabarse, o espetáculo recebeu classificação etária de 16 anos pelo Ministério da Justiça. Para ele, a exibição tem respaldo do artigo 220 da Constituição Federal, segundo o qual "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição".
Lagomarcino acrescenta que sua segunda motivação para pedir a proibição da peça em Porto Alegre foi a discordância com o uso de financiamento público para a exibição da montagem, uma vez que o festival conta com patrocínios via Lei Rouanet e Lei de Incentivo à Cultura estadual, além de verba da prefeitura. Segundo ele, a consequência natural de seu pedido, caso seja acatado pela Justiça, seria a devolução dos valores captados para esta peça aos cofres públicos:
— Esse tipo de financiamento público é como negar a existência de prioridades verdadeiras em nível federal, estadual e municipal. Pelo que sei, os professores aqui no Estado estão em atraso, há um lodo de corrupção no governo federal, tanto na presidente cassada anteriormente quanto no governo atual, e a prefeitura de Porto Alegre também está em atraso com seus servidores.
Alabarse afirma discordar dessa visão:
— Sem cultura, não há cidadania. A cultura forma uma dupla fortíssima com educação. Um povo que não preserva sua cultura é um povo sem identidade. O Em Cena vai fazer 24 anos respeitado no mundo inteiro graças à qualidade de sua programação. Trouxe a Porto Alegre os maiores nomes das artes cênicas do mundo, com uma programação sempre pluralista. Isso aumenta a inteligência de uma cidade.
Integrante de um grupo independente de intelectuais intitulado ProsperArte, o professor titular de História da UFRGS, Francisco Marshall, afirma que coletivo cogita a possibilidade de entrar com um habeas corpus preventivo para garantir a exibição do espetáculo:
— Se Jesus Cristo aparecesse hoje e visse esses caras que estão fazendo esses ataques (à peça), ele diria: "Não são cristão, pois estão odiando e agredindo". É um grande paradoxo, porque eles querem se apresentar como defensores da moralidade, mas na verdade estão fazendo uma coisa muito imoral, que é agredir a arte, a cultura e a civilização.
O Evangelho Segundo Jesus... esteve recentemente no centro de uma polêmica ao ser proibido pela Justiça no Sesc de Jundiaí (SP) na última sexta-feira (15/9). Em sua decisão, o juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí, alegou que a peça é "atentatória à dignidade da fé cristã, na qual Jesus Cristo não é uma imagem e muito menos um objeto de adoração apenas, mas sim o filho de Deus". O Sesc recorreu da decisão. Depois, a montagem foi exibida, com sucesso, em outras cidades.