Um tanto por acaso, outro tanto por querer, posso dizer que tenho uma razoável leitura do romance brasileiro da nova geração.
Esse acúmulo me permite arriscar uma generalização: não há, em praticamente todo o extenso repertório dos escritores brasileiros abaixo dos 60 anos, um, sequer um que tenha produzido um bom romance que encare e critique as elites econômicas ou políticas. Que tenha trazido para dentro de seu enredo, como figura central, um grande empresário, um político poderoso, alguém, enfim, cuja ação represente o poder de nosso tempo. E essa ausência dá o que pensar: por quê? Como se explica essa ausência?
Começo de fora para dentro: o último romance brasileiro, entre os que li, a falar de gente do andar de cima foi Leite Derramado, do Chico Buarque. Lançado em 2009, este ótimo relato dá a palavra para um velho decrépito, em momento final de sua vida, que desfia de modo errático a história de sua família, no poder desde o século 18. Elite mesmo, fornecedor do governo, sempre beneficiária dessa grande maracutaia que faz o Estado brasileiro dar abundantemente de mamar a uns poucos, que grudam como craca e dali não saem – se rearranjam, como está agora acontecendo no plano federal.
Mas o Chico tem mais de 70 anos. Os escritores sub-60, que podem ser divididos, para fins de clareza, em duas gerações ou duas levas – nascidos nas décadas de 50 e 60 de um lado, e nas de 70 e 80 de outro –, fizeram já bastante coisa. Sem maior rigor nesta divisão, dá para listar uns temas bem nítidos.A vida dos miseráveis, dos de baixo, especialmente nas grandes cidades mas não só: Rubens Figueiredo, Fernando Bonassi, Ferréz, Paulo Ribeiro, Marçal Aquino, Paulo Lins, Luiz Ruffato, Lourenço Mutarelli, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire. Uns bons, outros muito bons, um que outro excelente, aqui temos todo um campo de interesse que o romance contemporâneo atende magnificamente. Nunca como agora em língua portuguesa os pobres, os miseráveis, os iludidos, os perdedores estiveram tão bem transfigurados em literatura. E este parece ser o tema mais forte, entre todos.
Outro tema forte, mais característico da segunda leva do que da primeira, tem a ver com os desconfortos existenciais das classes médias letradas, muitas vezes associados com a vida fora do Brasil, ou enfim com uma experiência cosmopolita. Trata-se de um tema presente na obra de gente como Julián Fuks, Michel Laub, Carol Bensimon, Amílcar Bettega Barbosa, Tatiana Levy, Beatriz Bracher, Cíntia Moscovich, ou dos mais velhos Cristóvão Tezza, Edney Silvestre. Também sem figuras dos grupos de poder.
Poucos parecem ter gosto pelo romance histórico. De cabeça lembro de quatro casos, sempre heterodoxos: Bernardo Carvalho, Alberto Mussa, Rodrigo Garcia Lopes e Miguel Sanches Neto, este o mais convencional na forma. Mas também sem o Poder. E tem muita gente inventiva, que nem cabe nesta simplificada lista, Luiz Sérgio Metz, Vitor Ramil, Fausto Fawcett, Daniel Galera, Paulo Scott, Daniel Pellizzari.Talvez o único dos romancistas a encarar algo do mundo do poder seja Miltom Hatoum, que por isso mesmo tem um ar meio vetusto.
E por que essa ausência? Uma resposta óbvia: porque os escritores provêm das classes médias. Outra resposta, não tão óbvia: porque falta leitor, ou seja, falta eco. Outra ainda: porque o poder ficou muito mais distante do cotidiano, muito mais inacessível, nos nossos tempos líquidos, com dinheiro digital e sem pátria. Sei lá.
* Luís Augusto Fischer escreve mensalmente no Caderno DOC.