Kylian Mbappé é a França em sua essência em campo. A França que os franceses querem ver e aquela que relutam em ver. O astro, de 24 anos a serem completados na terça-feira (20), é o orgulho de um país. Um sujeito de boa imagem, engajado em causas sociais, de vida discreta fora de campo e que derruba recordes a cada partida aqui nesta Copa disputada no deserto. Já deixou Pelé para trás, como o mais jovem goleador em Mundiais antes dos 24 anos, 9 a 8.
Também passou batido por Maradona, Messi e Rivaldo na tabela de artilheiros das Copas, com os cinco gols marcados no Catar. Mais, Mbappé é o grande nome desta França que pode se tornar a primeira seleção a conquistar duas Copas seguidas desde o Brasil de Pelé, Garrincha e Amarildo em 1962. Derrubará, caso vença a Argentina, uma marca de 60 anos.
Os números de Mbappé impressionam mesmo. É inescapável falar deles. Por isso, estão aqui em cima, reluzindo o topo deste texto. Mas, acreditem, a história do Mbappé fora de campo é ainda mais atraente. Embora, tenha estado sempre conectada com o futebol, resume muito do que são a França e a sua seleção hoje. Resumem um país que vive em conflito com seus filhos vindos das colônias e relegados à sombra na sociedade. Mas também é, no campo esportivo, o fruto do sucesso de um projeto para se tornar potência no futebol, com uma seleção multirracial que também é uma bandeira pela igualdade. A mesma que foi lema da Revolução Francesa e está na constituição do país ao lado de fraternidade e liberdade.
Mbappé nasceu e cresceu em Bondy, distrito no subúrbio de Paris, a cerca de 11 quilômetros da região central. É mais um caldeirão social da França, fervilhante pela desigualdade. Ali, vivem imigrantes africanos e aqueles vindos dos territórios ultramarinos da França, como Martinica e a Guyana, do outro lado do Atlântico. Mbappé é filho dessa mistura. O pai, Wilfried, tem origem camaronesa. A mãe, Fayza Lamari, argelina. Nada mais francês nos dias atuais.
A vida no subúrbio moldou Mbappé. O AS Bondy e a família forjaram o jogador. Até porque clube e família se misturavam. Wilfried foi, por anos, técnico do time. Comandava o AS Bondy nos renhidos campeonatos amadores. O filho mais velho era um dos jogadores. Aliás, aqui está outra faceta do subúrbio. Jirés Kembo-Ekoko, hoje um jogador aposentado aos 36 anos, é congolês e filho de um amigo de Wilfried que jogou a Copa de 1974 pelo Congo. A morte prematura do pai fez com que Jirés fosse levado pela mãe para estudar em Paris. Lógico que os Mbappé acolheram o guri. Tanto que ele virou filho adotivo e grande ídolo de Kylian.
Jirés seguiu caminho. Jogou no Rennes, nos Emirados, no Catar e encerrou a carreira no Bursaspor turco. Era ele que Mbappé ia assistir jogar no Bondy. Wilfried relutava em alistar o pequeno. Até que um dia um dirigente do clube o viu na beira do campo com a bola, levou-o ao vestiário e o uniformizou. Só faltava a chuteira, mas o tênis quebrava o galho. Antes dos 10 anos, portanto, começava a trajetória de Kylian Mbappé.
A partir daí, tudo aconteceu na velocidade "Mbappé", conforme ele conta em depoimento ao The Players Tribune (se ainda não leu, corre lá depois de terminar esse texto). Aos 11 anos, o Chelsea o levou para uma semana de treinos em Londres. Ele voltou para casa com fotos ao lado de Drogba e flanando. Os pais brecaram. Queriam que Mbappé tivesse uma infância de criança, se divertindo e criando casca no subúrbio, onde saber se defender, respeitar e se posicionar é fundamental.
Wilfried e Fayza sabiam, no entanto, que logo o filho do meio alçaria voo. Pouco antes de ele fazer 14 anos, o telefone tocou em Bondy. Era o Real Madrid. Do outro lado da linha, um funcionário repassava convite de Zidane, na época diretor esportivo, para um período de treinos. Logo Zidane, seu grande ídolo, o craque cujos pôsteres dividiam espaço com os de Cristiano Ronaldo na parede do seu quarto. Eles foram. Quando chegaram ao CT, era o próprio Zizou que os esperava. Convidou-os para ir até o campo. Abriu a porta do carro e apontou para o banco do passageiro.
— Vá em frente, entre.
Mbappé ficou tão nervoso diante do ídolo e sua máquina que soltou uma pérola.
— Devo tirar os sapatos?
Zizou sorriu. E foram para o campo. O sonho do Real é antigo, como se vê. Nessa época, Mbappé já estava em Clairefontaine. Aqui, entra o caso de sucesso da seleção francesa. Clairefontaine é um CT de 64 hectares a 60 quilômetros de Paris que mudou a França de patamar entre as seleções. A conquista da Copa de 1998 já é fruto do CT, inaugurado em 1988. Boa parte dos grandes jogadores franceses foram moldados ali com um trabalho que reúne a ciência no treino e a pedagogia na formação do cidadão. Clairefontaine é o maior dos 13 centros de formação da Federação Francesa de Futebol espalhados pelo país.
Há uma cadeia que abastace os centros. Começa pela criação de espaços de esporte nas periferias, como Bondy, e estímulo ao futebol amador. Os observadores acompanham de perto as competições e levam os principais talentos para morar, estudar e treinar nos CTs. Algo que os clubes também fazem. Isso explica muito do grande número de jogadores franceses de ponta surgidos nos últimos anos.
Mbappé cumpriu esse roteiro, só que mais rápido do que os demais. Aos 15 chegou ao Monaco. Aos 16, se tornou o jogador mais jovem a estrear e a marcar pelo time principal. Aos 18, ajudou o Monaco a ser campeão francês e semifinalista da Liga e acabou no PSG por 180 milhões de euros (segundo mais caro, atrás de Neymar). Aos 19, foi campeão mundial. O que pode se repetir neste domingo (18), no Lusail, dois dias antes de fazer 24 anos. Em ritmo alucinante. Como ele é no campo, capaz de correr a 36 Km/h, conforme registrou a Ligue 1 francesa nesta temporada. Sempre com os pés no chão. Sem se esquecer das origens de Bondy, da dureza do subúrbio e do quanto pode fazer com que a Torre Eiffel seja para todos os franceses.