Dias atrás, conversava com o Tinga por WhatsApp sobre o evento que ele organizava no Dia das Crianças, na Restinga, o lugar de onde saiu e do qual nunca se esqueceu. No final da conversa, o Tinga tascou a pergunta mais repetida no ecossistema gaúcho da bola nesses dias:
— E o Grêmio, hein?
Respondi que via a situação como preocupante, pela falta de reação. O Tinga, como nos tempos de motorzinho, devolveu de primeira:
—Esse filme eu já vi. Final de geração. Pega quase todos os times grandes que lutaram para não cair, foram os mesmos sinais.
O que o Tinga, um cara com doutorado em vestiário, disse vai ao encontro do que ouvi em 2016, em entrevista de Reinaldo Rueda, ao cair com o Nacional-COL, na semifinal do Mundial de Clubes. Rueda ainda remoía o 3 a 0 do Kashima Antlers, em Osaka, quando soltou a seguinte frase:
— Um clube sul-americano que ganha um grande título, como a Libertadores, precisa rapidamente trocar cinco ou seis jogadores.
Em seguida, o atual técnico da Colômbia explicou a razão para a cirurgia em um time recém campeão. Sustentou que, no nosso continente, os jogadores que conquistam grandes títulos crescem demais no vestiário. Por vezes, tornam-se (ou se veem) maiores do que o próprio clube.
Trocar algumas figuras oxigena o ambiente, abre espaço para novas lideranças e injeta no grupo uma ambição que, por chegar ao ápice, é comum alguns atletas perderem. Nunca podemos nos esquecer de que são seres humanos e, como tais, com as mesmas fragilidades que nós.
O que o Tinga me disse, há algumas semanas, e o Reinaldo Rueda explicou lá em 2016, mostra o quanto os clubes brasileiros estão preparados para chegar ao topo. E também como são despreparados para se manter lá no alto, curtindo a brisa das vitórias. É como se esse ar fosse rarefeito e inebriante.
— Sabemos como fazer para ganhar, mas não sabemos o que fazer para seguir ganhando — resumiu Tinga, nesta sexta, por telefone.
Tinga dá palestras sobre gestão Brasil afora, escorado na vivência de mais de 20 anos de vestiário. Sabe do que está falando. Como jogador, testemunhou do lado de dentro vários ciclos que se encerraram e fizeram clubes despencarem. Em 1997, quando subiu pelas mãos de Hélio dos Anjos, entrou em um Grêmio que havia recém encerrado a vitoriosa Era Felipão.
Sua saída do Grêmio, no começo de 2004, coincidiu com o final da Era Tite, pontuada por conquistas e um futebol de encher os olhos. No Cruzeiro, onde era tão líder de vestiário que os jogadores o chamavam de “Ministro”, outra vez fez parte de uma era vitoriosa, que precedeu uma derrocada.
Talvez o Inter de 2006 tenha sido uma exceção, aponta Tinga. Isso porque o clube, depois de ganhar Libertadores e Mundial, viu ídolos e lideranças como ele e Fernandão saírem, para a chegada de nomes de alto quilate, como D’Ale, Guiñazú e Kleber, e a ascensão de novos figurões, como Bolívar.
Porém, o mesmo não foi feito depois de 2010. D’Ale, por exemplo, se perpetuou como grande líder. Guiñazú só saiu por questões familiares. Em 2016, numa atitude intempestiva, a direção resolveu que era momento de fazer uma profunda renovação. Um time descaracterizado, aliado à má gestão, derrubou o Inter para a Série B.
Borussia
O sofrimento do Grêmio neste 2021 parece reprisar esse filme tipicamente brasileiro. O clube demorou a dar como encerrado o ciclo vitorioso que se iniciou em 2016, atravessou 2017 e pontuou 2018. A eliminação para o River, na semifinal da Libertadores, foi um crime. Ninguém pode ser culpado por levar dois gols em sete minutos, diante de 50 mil torcedores. Mas ali vieram sinais de que era preciso parar e planejar o amanhã.
O Grêmio seguiu surfando a onda. Em 2019, a queda no 5 a 0 para o Flamengo foi o alerta de que essa onda virava marola. A direção mudou. Mas nos bastidores. Trocou do preparador ao assessor de imprensa, mas não mexeu no grupo.
O plano para 2021 era iniciar um novo ciclo. O presidente deixou claro na primeira entrevista coletiva da temporada. Porém, entre um ciclo e outro, há um hiato. E um alto risco de se perder no vácuo que ele cria. A transição entre uma era e outra precisa ser gradual.
É preciso perceber, nos momentos de vitória, que o ídolo de hoje, ali adiante, perderá o fôlego. Isso exigirá que, infelizmente, seja tratado como um jogador e não uma divindade. Claro, com o respeito que um ídolo merece.
É preciso saber também que perpetuar figuras no vestiário impede a ascensão de novos talentos e, principalmente, de novas lideranças. Qualquer ambiente profissional necessita que novos protagonistas surjam. A visão diferente do que trazem oxigena. Além de mostrar aos novatos que, sim, a fila anda.
O próprio Tinga sentiu na pele essa saída de cena. Foi no Borussia Dortmund, no final de 2009. Um certo dia, Jürgen Klopp o chamou na sua sala. Explicou que pretendia mudar a forma de jogar do time na temporada seguinte, para a qual declinaria dele. Assim, avisava-o, seria liberado ao fim do campeonato.
Tinga, é claro, ficou contrariado. Era ídolo no clube, tinha seu nome cantado pela Muralha Amarela. No dia seguinte, saía de casa quando um conversível trancou seu carro. Era Klopp. “Vem comigo para o treino”, disse o alemão. Tinga pensou: “Esse cara me dispensa e quer me dar carona ainda?”. No caminho, o técnico explicou numa conversa franca porque estava abrindo mão dele.
Ao chegar ao CT, Tinga queria abraçar Klopp. Estava realizado com o respeito demonstrado e havia compreendido que seu tempo ali passara. O alemão fez o mesmo com goleiro suíço Frei e, no ano seguinte, com o lateral brasileiro Dedê, que tinha 14 anos no clube.
— O Dortmund não acabou. Pelo contrário, montou super times, vendeu jogadores por uma fortuna e segue se renovando. Agora, vai fazer a maior venda do futebol, com o Halland. Mas, lá atrás, eles decidiram que era preciso mudar, seguir em frente – observa Tinga.
Está aí o exemplo. Quem sabe, depois desse drama vivido pelo Grêmio, não fique a lição de que, depois da festa de hoje, vem a ressaca de amanhã.