A sombra do coronavírus pode fazer com que camisas pesadas e histórias centenárias no futebol do Interior sucumbam. Enquanto montamos barricadas para evitar a propagação dessa pandemia e travamos uma guerra pela vida, um olhar mais à frente aponta um cenário perigoso para quem reside na gigantesca base da pirâmide do futebol brasileiro, os mais de 97% que vivem com salários diminutos. A paralisação do futebol gaúcho colocou em estado de alerta os 16 clubes da Divisão de Acesso. Desenhou um horizonte em que muitas portas podem estar fechadas quando a covid-19 tiver virado história — e tomara que seja logo.
Para se ter uma ideia da dificuldade, o simples fato de mandar os jogadores para casa foi um desafio. O São Paulo fez vaquinha entre os dirigentes para bancar R$ 10 mil em passagens aéreas. O União-FW mandou para o Nordeste e o Centro-Oeste 10 jogadores que moravam no seu alojamento. O último deles pegou um avião em Chapecó para descer no Pará e, de lá, encarar mais três horas de estrada até sua casa. Sem a certeza de que conseguiria cruzar a divisa, pelas restrições impostas.
As compras de passagens foram suficientes para abalar as finanças. O São Paulo gastou numa tacada só R$ 10 mil. A folha mensal do clube é de R$ 60 mil. Um quadro parecido com o do União-FW, cuja folha é de R$ 90 mil. Há quem gaste um pouco mais, como o Avenida, cujo custo mensal de todo o clube gira em R$ 130 mil.
O que é comum entre todos é que a principal receita vem da bilheteria e da copa do estádio. Ou seja, sem jogo, não há dinheiro. Até mesmo manter as contas básicas é um desafio. Só em água e luz, o Aldo Dapuzzo consome quase R$ 10 mil mensais do São Paulo. O União estima que ficar aberto represente R$ 30 mil mensais. Por isso, a sombra do coronavírus trouxe junto o medo de que a pandemia deixe com herança a falência.
— Vivíamos no fio da navalha antes dessa pandemia. A gente vendia o almoço para comer a janta. Quando te tiram até o almoço, tu não tens como jantar — diz o presidente Deivid Pereira, do São Paulo.
A FGF tem se mostrado parceira dos clubes. A antecipação de parte da cota de R$ 60 mil pela participação ajudou a bancar os custos das viagens dos atletas. Os salários de janeiro e fevereiro estavam quitados, ma há março para pagar, já que o campeonato parou na metade do mês. Como foram disputadas apenas três rodadas, o dinheiro da renda não pingou no caixa.
O grande receio dos clubes nem é o fim precoce do campeonato. Mas como se acertar com os jogadores. Os contratos vão até junho. Pagá-los sem estar em atividade é impossível. A esperança é de acordo com o Sindicato dos Atletas, para que os contratos sejam suspensos e retomados com a competição.
O presidente do União-FW, Edison Cantarelli, até sugeriu no grupo de WhatsApp dos dirigentes uma saída intermediária, de pagar o piso, de R$ 1.815, até que a bola volte a rolar. Calcula que, para isso, seja suficiente R$ 1,1 milhão. Porém, esse dinheiro precisaria vir, por exemplo, do cofre forrado da CBF.
— A minha esperança é de que alguém consiga bancar um suporte. Seria a CBF, não? O lucro que ela teve, se não for para salvar o clubes pequenos, que são base das federações, para que seria? — questiona.
O acordo agradaria o Sindicato dos Atletas do RS, garante presidente Paulo Mocelin. Seria uma saída boa para todos, me disse em conversa por telefone. Porém, os clubes temem que os jogadores buscuem o restante em ações judiciais logo ali adiante. Temem que acabem seduzidos por algumas propostas de escritórios de advocacia, que segundo Cantarelli, já chegaram aos celulares dos atletas.
— Um ou dois meses, na Divisão de Acesso, é muito tempo. Se cada um quiser olhar só o seu direito, virá uma situação de quebradeira geral. A preocupação é grande — diz Guilherme Eich, vice do Avenida.
Ou seja, mais do que nunca, será preciso a solidariedade que a vitória sobre a pandemia exige de todos nós. Caso contrário, o coronavírus deixará a sua história e um rastro de clubes tradicionais que viraram apenas história.