Caía a tarde feito um viaduto quando o presidente da República de uma nação que deverá superar - se não hoje, nos próximos dias - a triste marca de oito mil mortos pela covid-19 se aproximou do cercadinho à frente do palácio onde reside com sua família, na Capital federal. Jair Messias Bolsonaro acena aos apoiadores e, desta vez, não manda ninguém calar a boca. E, caricato, indaga:
- Tá ao vivo?
Não sem razão. O presidente, então, inicia ali uma fala que para um observador distante da política poderia parecer despretensiosa ou desprovida de planejamento. Diz que é vítima de perseguição, cita Marcelo Tas, Preta Gil e o CQC e, em tom não inédito, tenta convencer que se arrependeu de um arroubo autoritário e grosseiro adotado pela manhã contra a equipe de repórteres que cobre o dia a dia presidencial.
Improviso? Convenhamos. Tem método. E uma estratégia que não surpreende quem acompanha as peripécias do governo não tão distante de Donald Trump. Enquanto centenas e milhares de brasileiros choram por não poder se despedir de um familiar que foi vítima da Covid-19 (a doença que isola o paciente até mesmo de seu círculo mais próximo), Bolsonaro faz caras e bocas em frente às câmeras de televisão. Caso alguém não esteja ao vivo, contudo, não se preocupe, os vídeos são cuidadosamente registrados e disseminados pelo gabinete do ódio que, claro, não existe (sic). Engana-se feio quem sugere algum movimento inconsciente de um brasileiro de vida simples que não tem dinheiro para pagar advogado, mas cuja esposa recebeu um cheque de R$ 40 mil até hoje não explicado.
O cala-boca da manhã gerou notas de repúdio, vídeos espalhados pelo Instagram e reprimendas (inclusive por parte desta colunista) mas faz parte de um pas de deux que o presidente insiste em encenar para entreter um país que chora com mais de 13 milhões de desempregados. Horas depois, Bolsonaro diz que não disse o que disse, que não quer falar mal do ex-ministro Sergio Moro (a quem chamou de Judas) e, afinal, que presidente não quer obter relatórios de inteligência de seus subordinados, não é mesmo?
[Marcelo Adnet não faria melhor. OK, faria. E você está perdendo tempo se ainda não se divertiu com as imitações do artista em Sinta-Se em Casa, disponível no Globoplay].
Em artigo publicado na Folha de São Paulo hoje, o professor Rodrigo Guimarães Nunes, que leciona filosofia moderna e contemporânea na PUC no Rio de Janeiro, sustenta com argumentos essa tese, de que a gritaria do presidente serve para criar confusão em meio a uma pandemia onde o governo não conseguiu, até aqui, promover respostas adequadas. Triste. Enquanto a pátria dorme distraída, subtraídas são a vida e a esperança de milhões. Seria preciso mais um texto para listar ainda as tenebrosas transações.