Da última conversa que tive com o meu avô antes de ele morrer após um acidente de carro, voltando de Santa Catarina, lembro que ele sorriu e disse que aquele era o primeiro dia de muitos em que ele não havia sentido dor, quando as enfermeiras o passaram de uma maca para outra no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre. Seu Vitorino, como a gente o chamava, tinha 80 anos e havia pegado a estrada rumo ao Estado onde nascera em busca da farinha de mandioca de Santa Catarina, cuja produção se tornou uma tradição que tem quase três séculos e surgiu do encontro das culturas indígena e portuguesa.
Meu avô enchia as garrafas PET com a tal farinha e voltava para casa distribuindo potes entre os quatro filhos, entre eles minha mãe — embora quem gostasse mesmo fosse meu pai, seu Erli, outro catarina que mistura farinha com feijão até hoje. Às vezes — Jesus! — no café da manhã.
Quis o destino que, naquele dia, quando retornava pela estrada com a irmã e a sobrinha, meu avô perdesse o controle do carro, depois de uma visita ao Morro da Borússia, em Osório. Até hoje não temos certeza sobre o que aconteceu.
Um primo que conseguiu estar no local pouco depois do acidente disse que a única coisa que meu avô pediu foi para que pegassem a tal farinha e um pedaço de carne, que estavam no porta-malas. Ele queria fazer o churrasco do Dia das Mães.
Vovô foi socorrido, levado para o hospital e no dia em que o acidente completaria uma semana, deu seu último suspiro. Pegou a todos nós de surpresa. Estávamos nos programando para levá-lo para casa. Como organizaríamos a rotina? Vai precisar de colete? Talvez se soubéssemos um mês antes, teríamos tido tempo para uma despedida.
Lembrei dessa história ao entrevistarmos o professor e historiador Leandro Karnal nesta semana no Timeline, da Rádio Gaúcha, ao lado da minha colega jornalista Juliana Bublitz, enquanto o titular desse espaço, David Coimbra, desfrutava de um merecido momento de regozijo ao lado de Bernardo e Marcinha, em Nova York.
Parêntese aqui. Esse mesmo David que até bem pouco tempo esticava as pernas em Tramandaí ou, admitamos, anos mais tarde, em Garopaba, na casa do Ademar. Pois agora embestou-se que o quintal de casa é a tal de Big Apple. Francamente.
A felicidade é um marketing. É preciso sorrir. É preciso postar. É preciso sorrir postando. Postar sorrindo.
Voltemos à entrevista. Falávamos nós, eu, Juliana e o professor Karnal, sobre a chegada do novo ano e, com ele, a renovação de votos, metas e posturas para 2020. Por que afinal repetimos essas práticas a cada 31 de dezembro?
São ciclos, explicava o professor. Se todos os dias fossem segunda-feira, se não houvesse Natal, Ano-Novo e Carnaval, a vida seria insuportável. Seguimos a reflexão divagando sobre a obrigação atual — e cafona, acrescentou Karnal — de sermos felizes, sorridentes e bem-sucedidos para os outros, nas redes sociais. Uma obrigação moral e social que não nos permite, de vez em quando, chorar um insucesso. Lamentar algo que deu errado.
A felicidade é um marketing. É preciso sorrir. É preciso postar. É preciso sorrir postando. Postar sorrindo. Você não arrumará emprego se não disser que é uma pessoa feliz, uma pessoa realizada, que tem uma família ótima, com dentes brancos e usa canudinho de metal. Pega mal. As redes sociais trouxeram uma cenografia de felicidade. Uma cafonice contemporânea. Antes, aceitávamos o fracasso. Hoje, é feio não ser feliz.
E em meio à ansiedade, que é também fruto dessa obsessão, Karnal propôs uma reflexão sobre aquilo que realmente importa. E se por alguns instantes, largássemos as redes sociais? Deixe de lado o WhatsApp. Esqueça a foto do prato pronto. Aproveite para saboreá-lo quentinho. Que tal celebrar junto à família? E por família, esclareceu, entendemos não somente pessoas de mesmo sobrenome, mas indivíduos que se amam e constroem, juntos, uma rede de proteção.
Foi falando sobre família que eu lhe disse que já havia perdido meus quatro avós, o último deles, seu Vitorino, em maio de 2018. E acrescentei que se pudesse voltar no tempo, queria ter tido mais momentos de paciência, para sentar e conversar por horas e horas com eles. Ouvindo histórias. Tomando café. Sem pressa. Sem redes sociais. Ao que ele respondeu:
— Eu perdi pai e mãe. Eu posso falar sobre esse vazio. Ninguém vai te amar como eles. Aos jovens, dou um conselho. Não é possível ser paciente o tempo todo. Você não é santo. Não é possível ouvir com carinho todas as pessoas. Você terá momentos difíceis. Recomendo o seguinte: eleja. Eleja as pessoas com quem você vai ter paciência. E no topo desta lista estão: pai, mãe, avós e irmãos. Eles te amam, apesar de te conhecerem.
De fato, não somos santos. Nem Jesus Cristo conseguiu ser paciente o tempo todo. No Vaticano, o papa Francisco perdeu as estribeiras. Mas depois pediu desculpas. Portanto, não se culpe. Perdoe-se. O novo ano chegou e temos a chance de começar de novo. Ou, simplesmente, continuar. Feliz 2020.