Enganou-se quem imaginou que o ataque investigado pela polícia à sede da produtora do grupo Porta dos Fundos no Rio de Janeiro seria o único episódio de violência presente no caso. Nesta quarta-feira, o desembargador Benedicto Abicair, da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), fez questão de nos lembrar que as trevas existem e apenas esperam que adormeçamos para voltar à tona com a força que outrora — num passado não tão distante — dominaram nosso país. Censura.
Pois o senhor Benedicto Abicair decidiu, do alto de seu poder monocrático, determinar a suspensão da exibição de A Primeira Tentação de Cristo, especial de Natal feito neste ano pelo Porta dos Fundos para a Netflix. Este mesmo senhor (vejam só!) que tempos atrás votou pela absolvição de um deputado federal sob a argumentação de que, em uma democracia, não via como "censurar o direito de manifestação de quem quer que seja", conforme nos revelou o jornal O Globo. Na ocasião, o senhor deputado havia dito, também em um programa de humor, que não teria filhos gays porque os seus "tiveram boa educação".
O mesmo desembargador. Dois episódios. Duas decisões diferentes. No caso do Porta, determinou Abicair, a suspensão era mais adequada e benéfica, "não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã". Francamente.
Como antes, quando do ataque por criminosos à sede da produtora, não houve manifestação de pessoas nas ruas. Nem do presidente da República, Jair Bolsonaro. E nem sequer do ministro responsável por formular políticas voltadas à segurança pública, Sergio Moro. Nesta quarta-feira, coube ao ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, dar nome aos bois:
— É uma barbaridade. Os ares democráticos não admitem a censura — declarou.
Intolerância
Censura e intolerância (por vezes, transformada em terror) deveria tirar o sono de todos nós.
E não se trata aqui de ignorarmos todos os demais problemas sociais. Nós ainda queremos saber de onde partiu o tiro que matou a menina Agátha, no Rio. Quem mandou matar a vereadora Marielle Franco. Quem tirou a vida da soldado Marciele, no Rio Grande do Sul. Quem será responsabilizado pelas centenas de mortes em Brumadinho, em Minas Gerais. Onde foram para os bilhões desviados da Petrobras.
No caso do Porta, é gravíssimo constatar que a sociedade brasileira responda com violência a uma produção humorística, ainda que possamos interpretá-la como desrespeitosa ou ofensiva a esta ou aquela religião. Uma tentativa de homicídio (assim investiga a polícia) jamais pode ser a resposta para qualquer que seja o ato. Há dois mil e dezenove anos, um homem sugeriria que uma pessoa eventualmente agredida não reagisse, mas sim oferecesse ao inimigo a outra face. Mas ele não foi ouvido. Nem na época, nem hoje. Aliás, foi crucificado, morto e sepultado. Reagiram pregando-o numa cruz aqueles que o enxergaram como um criminoso pela defense de pobres, marginalizados e excluídos.
A reação ao humorístico lembrou o ataque à sede do jornal francês Charlie Hebdo, em 2015. A publicação havia satirizado o profeta Maomé dias antes de sofrer um sangrento atentado por parte de assassinos que não concordavam com o tipo de piada impressa. Na ocasião, doze pessoas foram mortas. O mundo se uniu em solidariedade, dor e na hashtag #jesuiuscharlie. Desta vez, agradeçamos, o fogo pôde ser controlado e ninguém se feriu. É preciso seriedade na apuração e agilidade na punição dos responsáveis pelo ato. Mais: precisamos refletir sobre a sociedade em que desejamos viver. A violência vai nos levar até onde? Oremos.
Não concorda com algo que foi dito pelo humorístico? Procure a Justiça. Jamais a violência. A lição não é minha. É do mesmo Jesus celebrado por quem reagiu ao especial de Natal do Porta dos Fundos. Foi ele quem orientou seus seguidores a tratar o próximo como a si mesmo. A oferecer a outra face, em vez de retribuir um ato violento. A não sermos hipócritas. Nem o Rio de Janeiro, nem o Brasil merecem mais violência. Precisamos de afeto, de empatia, de respeito.
Bem-aventurados os defensores da paz, disse Jesus, porque esse, sim, serão chamados filhos de Deus.