Três artistas de rap com estilos e histórias diferentes - mas com uma temática em comum - despontam como expoentes de uma nova batida na cena musical do Rio Grande do Sul. Não por acaso, a frase "tem preto no Sul" aparece nas letras de Cristal, Nego Joca e Cabral como a tradução de um movimento maior, contra todas as formas de preconceito.
Em um de seus hits, Cristal, 19 anos, fala do "frio mais profundo" de se sentir intrusa na própria terra. O repertório ultrapassou fronteiras, e a qualidade do trabalho despertou questionamentos sobre a decisão da rapper de seguir vivendo nesse canto do mundo - onde a arte negra de raiz urbana ainda luta por espaço.
— Me perguntam diretamente: quando tu vais morar em São Paulo? Não é uma coisa que eu tenho em mente. Eu sempre quis trabalhar com a rede de apoio que temos aqui — diz Cristal.
Aos 28 anos, Nego Joca trilha um caminho diferente. Sair do Estado não era opção, mas a falta de oportunidades levou o artista a recalcular a rota. Agora, ele está de malas prontas para o Rio de Janeiro - e vai levar o hip-hop gaúcho na bagagem.
— Eu investia e trabalhava, mas comecei a notar que, como músico e consumidor, a gente não consumia os artistas daqui — desabafa.
Cabral, 27 anos, também migrou em busca de visibilidade: trocou Caxias do Sul, na Serra, pela Capital, onde acaba de lançar o rap Carne de Pescoço, um petardo contra a hipocrisia de quem vê na cor da pele motivos para discriminar.
— Me reconhecer como um homem negro no Sul levou tempo, ainda mais na Serra. Entendi que o resto do país via o Estado como um lugar de descendentes de europeus e muito racista. Na minha música, busco conversar com outras pessoas negras para mostrar que elas não estão sozinhas — conta Cabral.
E não estão mesmo.
Aliás
Passou da hora de mudarmos essa realidade, ainda mais quando vemos gente defendendo atrocidades como o nazismo e emanando preconceitos de todos tipos.
Trio de respeito
Cristal Rocha faz diversos trocadilhos com seu nome de batismo que, de certa forma, já parece ter nascido predestinado ao brilho. A jovem, que começou a trajetória nas rodas de poesia e de slams da Capital (em que poetas da periferia abordam temas como racismo e violência, chamando para a reflexão), conta que a idade e o fato de ser mulher sempre despertaram desconfiança sobre seu potencial. Enfrentando os preconceitos, hoje Cristal vive do dinheiro que faz com a música e emprega familiares, que fazem parte da sua equipe.
— Esse sentimento de ser subestimada me dá um gás para provar que eu sou mais do que a expectativa — destaca.
Tem preto no Sul e eu falava sério, ‘cês olha’ pra cá, mas não enxergam tudo
CRISTAL
Na música Rude Girl
Em 2020, a rapper ganhou uma oportunidade de ouro: gravar com Djonga, um dos principais nomes do rap no Brasil. No ano passado, o lançamento do EP Quartzo consolidou o nome dela no cenário nacional. Com os olhos no hip hop como movimento cultural, Cristal esbanja conhecimento e respeito pelos que ajudaram a pavimentar a estrada do rap no Estado, citando Rafuagi e Zudzilla como bons exemplos.
— O que me fere é saber que o trabalho que está sendo feito há muito tempo aqui não é reconhecido — lamenta.
O nome que aparece na chamada das aulas de publicidade e propaganda da UFRGS é Joaquim Luiz Braga Lima, mas todos o conhecem pelo nome artístico, Nego Joca. Desde jovem participando dos espaços voltados ao hip hop e frequentador antigo da Batalha do Mercado (encontro de MC's que ocorre todo o último sábado do mês no centro de Porto Alegre, ao lado do Mercado Público, às 21h), o rapper conta que foi ao longo da trajetória que sentiu a necessidade de escrever sobre a disparidade de oportunidades para os músicos de rap do RS.
— Eu percebia que a questão geográfica influenciava, mas achava que era do jogo, não algo que eu tinha que trazer para as minhas letras — conta.
Pareço tão longe e nem lembro como cheguei aqui, miro o horizonte e quanto mais corro, mais vejo fugir. Talvez seja utopia, como Galeano disse
NEGO JOCA
Na música Quem será (Intro II)
A faculdade, então, passou a treinar o olhar de Joca, com foco mais técnico e voltado ao mercado. O resultado das novas investidas e do lançamento Pré-História Vol. II acabaram resultando em um contrato com a Paizão Records, selo musical do artista Babu, no Rio de Janeiro.
— É um trabalho relacionado à questão da democratização do acesso, para conseguir chegar ao público, e uma conscientização para o resto do Brasil do que é o nosso Estado — diz.
Nascido e criado em Caxias do Sul, Jorge Fernando Cabral optou por usar somente o sobrenome ao assinar suas composições, como forma de homenagear o pai. Quando tudo começou, em 2020, cantar, gravar e produzir eram experimentos. Hoje, Cabral considera seu trabalho na música uma forma de se estabelecer e de fincar raízes no espaço cultural do RS.
Toda vez que ligo o GPS, a localização tá no Sul. Agora como é que tu me explica que 'tamo' sempre fora do mapa?
CABRAL
Na música Carne de Pescoço
— A trova e a poesia do gaúcho estão muito presentes no hip hop do Estado. Tem uma qualidade diferenciada nas nossas letras que vem dessa herança — avalia.
Disposto a alcançar novos territórios, ele acredita que Porto Alegre pode oferecer mais oportunidades que o Interior na sua carreira, mas lamenta o fato de que outros lugares do RS não deem atenção a todos os potenciais culturais:
— Estar no fervo me ajuda a criar e distribuir de uma forma muito melhor meu trabalho, mas a gente precisa de união para fazer ainda mais barulho. Essa bolha que queremos furar para chegar no eixo, podíamos fazer juntos, para chegar com mais força.