Era 2017 quando a porto-alegrense Cristal Rocha, à época com 15 anos, declamou sua primeira poesia publicamente. Vulnerável mas firme, como as pedras que lhe envolvem o nome, mostrava, apreensiva, versos que havia preparado para apresentar no sarau negro Sopapo Poético. Daquele dia até aqui, descobriu as competições de poesia falada dos slams, tornou-se campeã regional da modalidade, publicou livros, migrou para a música, viu um rap autoral estourar, gravou com Djonga, abriu shows nacionais, subiu ao palco do Planeta Atlântida e lançou agora seu primeiro EP — Quartzo, que chegou em julho às plataformas digitais.
Composto por sete faixas, o disco incorpora sonoridades "vindas do pátio de casa" — inclusive pela produção assinada por MDN Beatz, primo da artista. Ritmos como a MPB, o reggae e o samba, presentes na musicalidade da família, se unem às batidas mais próximas do rap, como o R&B e o trap, e revelam, rima a rima, uma nova fase de quem, em quatro anos desde os primeiros poemas declamados e apenas dois do primeiro lançamento musical — Rude Girl, de 2019 —, atingiu a maioridade também na arte.
Nas letras, foi a subjetividade que ditou os versos. Com uma trajetória na música marcada pela escrita sempre atenta ao entorno, em Quartzo, Cristal se permitiu falar ao outro muito mais a partir de si: uma jovem mulher negra da periferia da capital gaúcha, artista, que, aos 19 anos, anseia demarcar seu lugar no mundo por meio das palavras, dos ritmos e dos sons.
— Minhas primeiras músicas diziam muito sobre o que eu via no externo. Quartzo é muito mais sobre o que me incomoda, sobre as minhas questões pessoais, que eu acho que também precisava falar sobre. Mas também é ato de resistência, também é amor, também é cuidado — explica. — A música e a poesia são quase como livros abertos sobre a nossa vida. Sempre senti esse incômodo e, ao mesmo tempo, essa necessidade de falar. Isso está sempre me dividindo como artista e como pessoa.
Em letra e batida, cada faixa representa a energia de um cristal e vem acompanhada de um videoclipe-conceito. Em Ametista, pedra ligada à intuição, a rapper aborda a angústia de não se deixar levar pelos deslumbramentos da vida artística: "Roupas caras, carros, fama, luxo, claro que eu quero, mas nunca fui eu / Muitos seguidores, publi, stories, claro que é preciso, mas nem sempre é bom / Disso tudo que me cerca sempre rezo pra que eu nunca me perca do som / Passo a noite em claro tentando entender onde eu esqueci de enxergar mеu dom".
Já a canção Lá em Casa remete ao quartzo azul, cristal que representa a tranquilidade, e aborda o processo de perceber-se como referência para crianças negras ("Tenho pretinhas pra inspirar lá em casa, tenho pretinhas pra inspirar / Se eu me perder eu vou voltar pra casa, pretinhos me esperando lá"). Samba-rap embalado por Henrique Rollo nas cordas e Marlon Ferreira na percussão, a faixa é uma das mais especiais do EP: traz as vozes de Kauana, Júlia, Gabriela, Sofia e Mathias Ferreira, primos menores da artista.
— Quando me vejo nessa outra posição, de alguém que pode inspirar outro alguém, que pode ser também referência, é uma responsabilidade muito grande. Mas, ao mesmo tempo, me motiva, porque tem muitas crianças que acompanham o nosso trabalho, tem muitas pretinhas dançando Ashley Banks (música dela lançada em 2019 que ganhou projeção na cena nacional). Sei que isso é também uma forma de revolução — comenta Cristal, que, apesar do pouco tempo de carreira, já acumula conquistas no meio artístico.
Caminhada
Com uma trajetória já consolidada na poesia urbana dos slams, foi a partir do lançamento de sua segunda música — a já citada Ashley Banks, de 2019 — que a artista do bairro Vila Nova ganhou projeção nacional também no rap. Inspirada na personagem de Um Maluco no Pedaço, a canção reverte a lógica racista que associa a existência de pessoas pretas a imaginários de pobreza, miséria e subserviência: "Montada em dinheiro igual Ashley / Família rica e preta igual Tio Phill / Imagina o que nós fez com esse money / Mas nunca esquecerei de onde eu vim".
Com mais de 327 mil visualizações do clipe no YouTube, a música conseguiu atingir ouvintes de diferentes regiões do país. Entre eles, Djonga, um dos mais importantes nomes do rap brasileiro contemporâneo, que de ídolo passou a também parceiro de composição. A convite do artista, Cristal participou da faixa Deus Dará, que integra o álbum Histórias da Minha Área.
— Ele postou um story ouvindo a minha música em novembro ou dezembro e, em fevereiro (de 2020), eu estava indo gravar com ele. Eu não tinha tantas visualizações, nem todo mundo da cena me conhecia e, mesmo assim, ele botou fé no nosso corre — relembra Cristal, revelando que as rimas assinadas por cada um na canção foram compostas separadamente. — No dia em que a gente se ouviu pela primeira vez, de frente, foi lindo. As letras se encaixaram sem a gente nem ter visto a parte um do outro antes.
Trilhando caminhos sobre uma estrada aberta por nomes como Negra Jaque, Zudizilla e o grupo Rafuagi, as conquistas da artista de 19 anos são coletivas — dela, dos que vieram antes e dos que virão depois. Em uma cena dominada pelo Sudeste do país, os anseios da carreira de Cristal vão além de emplacar hits nas paradas musicais: a ambição é mostrar ao Brasil que "tem preto no Sul" e que o Rio Grande também é terra de hip-hop.
— As pessoas têm uma glamourização muito grande da arte e da música. Fazer arte no Brasil é difícil. Ainda mais no rap, ainda mais sendo preto e ainda mais sendo preto, no rap e no Rio Grande do Sul. Temos vários artistas que estão há um tempão na estrada, que têm o maior respeito, que são referências, mas que não têm o devido reconhecimento fora daqui. É como se invalidassem toda a nossa correria — lamenta.
Nadando contra a maré, a artista promete mais lançamentos e novas parcerias de peso para este ano. Apesar das dificuldades, Cristal sabe que pode brilhar mais forte:
— Sempre me imagino em um palco enorme, com milhares de pessoas, em um show internacional.