A história de Maria Rita Stumpf é do tipo inacreditável. Estava ela posta em relativo sossego em São Paulo, onde vive, quando, num dia de 2015, ficou sabendo que sua música Cântico Brasileiro nº 3 (Kamaiurá) fazia sucesso em discotecas europeias. Como assim? A música, de temática indígena, premiada em 1984 no festival Musicanto, de Santa Rosa (RS), fora gravada em seu primeiro LP, Brasileira (1988). Pois esse novelo iria se desenrolando aos poucos, até chegar ao álbum Inkiri Om, recém lançado nas plataformas digitais, que marca a volta da cantora e compositora gaúcha aos estúdios 27 anos depois.
Maria Rita não sabe como – pois nunca foi informada por ninguém – o disco Brasileira foi parar no Japão, onde seria ouvido em 2015 pelo DJ e pesquisador anglo-espanhol John Gómez. Apaixonado pelo ritmo hipnótico da quase ritualística Kamaiurá, ele a incluiu na coletânea Outro Tempo: Electronic and Contemporary Music From Brazil, 1978-1992, lançada na Europa em 2017 – e que, entre outros artistas, tem Os Mulheres Negras, Nando Carneiro, Piry Reis, Luli e Lucina, Marco Bosco e Andréa Daltro. A baiana Andréa foi justamente a ponte para a resolução do “mistério” da “identificação” de Maria Rita.
As tentativas de Gómez para encontrá-la paravam sempre na filha de Elis Regina. Explica-se: o disco Brasileira é assinado apenas por “Maria Rita”, sem qualquer menção ao sobrenome Stumpf. Ocorre que Andréa Daltro é casada com o gaúcho Ricardo Bordini, um dos músicos desse trabalho de estreia de Maria Rita Stumpf. Identificada, e caindo no gosto de outros DJs de sucesso, como o brasileiro Millos Kaiser, ela voltou aos palcos em 2018, participando de festivais como o Red Bull Music Academy, braço brasileiro do holandês Dekmantel, ambos em São Paulo, e a edição porto-alegrense do Kino Beat, onde cantou quase como uma desconhecida.
A esta altura cabe situá-la. Nascida no interior dos Aparados da Serra, viveu em Caxias do Sul dos sete aos 15 anos, quando começou a compor e conheceu Ricardo Bordini. Aos 16 mudou-se para Porto Alegre, formando-se em Jornalismo pela UFRGS, onde também estudou Música. Fez o primeiro show em 1980. Tanto queria mais que em 1985 fez nova mudança, o Rio de Janeiro, para estudar com o pianista Luiz Eça, líder do Tamba Trio, símbolo da bossa nova. O LP Brasileira foi feito justamente com Eça, Bordini e com o grupo mineiro Uakti. Mas a época, auge do rock brasileiro, era difícil.
Ficaram cada vez mais restritos os espaços para a música que Maria Rita fazia, com interrogações sobre o cuidado com a natureza, o descaso ante a questão indígena, a falta de sensibilidade social, os preconceitos. Como já tinha experiência na produção, em 1993, após lançar o CD Mapa das Nuvens (que passou praticamente em branco na mídia), ela criou a agência Antares, focada na dança e na música erudita. Trouxe ao Brasil mais de 60 grupos de dança e músicos como Philip Glass, Isaac Stern e Valentina Lisitsa e empresariou carreiras como a do Duo Assad.
Em 2011, mudança de ares: ela vai passar um tempo no Exterior e escolhe Lima, a bela capital peruana, para começar. Agenciou shows de artistas brasileiros lá e em países vizinhos como a Colômbia, entre eles Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mas, dois anos depois, precisaria voltar ao Rio Grande do Sul para cuidar da mãe, ficando entre Porto Alegre, Rio e São Paulo, até se fixar na capital paulista em 2016. Uma época de trabalho difícil, ainda mais que nunca conseguiu ter projetos aprovados nas leis de incentivo. A Antares sobrevivia com trabalhos pontuais. E discos com suas músicas antigas remixadas iam saindo na Europa.
No início de 2019, começou a gravar o novo disco, até para atender ao novo mercado. Rita “arrebanhou” amigos que estavam nos outros dois álbuns, como Bordini (hoje professor na Universidade Federal do Maranhão), Paulo Santos (do Uakti), Marcos Suzano e Lui Coimbra, e trouxe novos como Matheus Câmara, Kassin Kamal, Paulo Rafael e Maurício Carrilho, quer dizer: só gente grande. O resultado combina novas músicas dela (e parceiros como Zé Caradípia), e canções de Milton Nascimento, Taiguara, Fernando Brant, Nelson Ângelo, Evandro Mesquita, Violeta Parra, o gaúcho Nando D’Avila.
Inkiri Om, título que mescla uma milenar expressão indígena com o milenar mantra hinduísta, é extraordinário. Estava pronto quando veio a pandemia. Em mariarita.com, constam o significado do título, letras, textos e as impactantes artes gráficas do encarte (que estarão na futura edição física do álbum). Maria Rita:
– Um dia eu iria gravar, nem que fosse só para mim. Resolvi fazer agora, para não pirar. O disco tem embasamento humanista, tudo a ver com o momento. Foi uma experiência bonita, alguns músicos não se viam há anos. E gravamos no modo antigo, todo mundo junto.
Um videoclipe
- Neste sábado, a cantora lança, no YouTube, o primeiro videoclipe do disco, com as músicas Cântico Brasileiro nº 3 (Kamaiurá) de 1988, e Cântico Brasileiro nº 7 (Inkiri Om), de 2020. Algumas cenas foram gravadas no Xingu. Direção de Henrique Santian. Veja em gzh.rs/MRStumpf